Este texto foi publicado em minha página pessoal de Facebook há alguns dias. Ele teve mais repercussão do que eu imaginei que teria e trouxe mais reflexão do que eu achei que traria. Compartilho agora aqui para que possamos discutir a ideia e as consequências dela, e possamos usar o espaço dos comentários para manter o diálogo aberto. É sempre impossível separar nossas interpretações de Montessori daquilo que Montessori disse. Nós nunca lemos o que ela disse, lemos o que podemos entender, o que faz sentido para nós, e portanto lemos interpretando.
Isso não está errado, não é uma falha e não é crime. Mas isso leva a três consequências importantes. Primeiro, nós precisamos falar o que pensamos que Montessori é. Se somos professores, pesquisadores ou gestores montessorianos, precisamos estar com outros montessorianos e dizer o que achamos que Montessori é. O que achamos que liberdade é. O que achamos que material é. Nós precisamos FALAR porque quando falarmos, vamos ver a reação do outro, e aí vamos saber se todos compartilham de nossa interpretação ou se... ...só aqueles que convivem conosco... ...só aqueles que nos ouvem muito... ...só aqueles que trabalham para nós... ...só nossos alunos de formação... ...só aqueles que se formaram no mesmo curso que nós... compartilham de nossa opinião. Nesse caso, vale a pena pensar. Sua interpretação pode ser diferente da de outra pessoa e estar certa. Mas é importante você saber de outras interpretações. Segundo, é fundamental reler Montessori. Podemos ler livros de outros autores, apostilas, manuais, blogs, assistir a vídeos e seguir páginas. Mas é fundamental reler Montessori. Ler e reler. Não porque lá esteja a verdade universal, mas porque reler Montessori à luz de novas experiências nos mostra ângulos que não víamos de Montessori e ângulos que não víamos da criança. Terceiro, é importante ouvir. É importante ler outras interpretações, escutar outras interpretações, assistir outras interpretações. O fato de alguém pensar, dizer ou fazer Montessori diferente de você não quer dizer que é pior - veja bem, PODE SER, mas não necessariamente é. Pode ser, e frequentemente É, que ouvindo outras interpretações você mude a sua. A Association Montessori Internationale acaba de reconhecer oficialmente, em um encontro nos Estados Unidos, que interpretações rígidas mantidas por muito tempo estavam levando Montessori à decadência, à irrelevância e ao desaparecimento. E vão reinterpretar agora. Se a AMI, que tem um histórico de seriedade e rigidez intelectual, está fazendo isso, nós todos podemos fazer. Mais. Todos nós temos o dever de fazer.
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Nós sabemos desde 2006 que quando corretamente utilizada, a pedagogia montessoriana dá às crianças oportunidades melhores que a educação tradicional, e conduz a resultados superiores tanto no que diz respeito ao desempenho acadêmico, quanto no que tange ao prazer da criança na escola e a qualidade de suas formas de socialização. Isso foi explicado por Angeline Lillard em um celebrado artigo publicado na revista Science. Desde lá, a pesquisadora não cessa de nos desafiar a dar passos mais corajosos em duas direções: uma aplicação que ela chama de “mais fiel” às ideias de Montessori e uma expansão corajosa do alcance dessas ideias. Estou para escrever este texto desde julho, mas só agora posso fazer isso, porque as descobertas que Lillard comunicou no Congresso Internacional de Montessori, em Praga, acabam de ser publicadas em um novo artigo. Antes de continuarmos: o estudo foi conduzido em escolas montessorianas ligadas à Associação Montessori Internacional, reconhecidas por aplicarem Montessori com alta fidelidade. Abaixo, há um quadro com algumas das características dessas escolas. Em sua nova pesquisa, que durou três anos e envolveu 141 crianças, em escolas tradicionais e montessorianas, Lillard descobriu que não só Montessori oferece resultados melhores para todas as crianças, mas o método também é capaz de resolver a desigualdade de desempenho acadêmico entre crianças de classes mais e menos abastadas, assim como ajudar no aprendizado de crianças que não tiveram a oportunidade de um bom desenvolvimento de Funções Executivas no cérebro. Explicando, de uma vez, uma solução possível de verdade para a desigualdade na educação e deixando claro um dos motivos pelos quais a inclusão em Montessori efetivamente funciona. Veja o artigo completo original aqui. Também vale a pena assistir à palestra de Lillard, logo antes da publicação, abaixo. Agora, vamos aos resultados. Diferenças entre escolas Montessori e Convencionais 1. Desempenho Acadêmico: • Desempenho igual no começo do ano; • Os alunos de Montessori avançaram mais rapidamente. • Uma vez isolados por gênero, renda e desenvolvimento de Funções Executivas, os alunos montessorianos continuaram a ter um desempenho superior. • As principais diferenças apareceram depois de pelo menos um ou dois anos na mesma sala de idades mistas na escola montessoriana. 2. Inteligência Social: • Desempenho parecido nos primeiros anos, entre alunos de escolas convencionais e montessorianas. • Desempenho significativamente diferente depois de um ou dois anos na escola montessoriana. • A inteligência social se desenvolveu mais rapidamente em crianças que atendiam escolas montessorianas. 3. Resolução de Problemas de Socialização: • Não houve nenhuma diferença, neste estudo, no que diz respeito à resolução de problemas de socialização entre crianças que atendiam escolas montessorianas e crianças que atendiam escolas convencionais. 4. Desenvolvimento de Funções Executivas: • Neste estudo, não houve evidências fortes de que as escolas montessorianas envolvidas levassem a um melhor desenvolvimento de Funções Executivas. 5. Orientação para Maestria (Mastery Orientation): • No início, não houve diferenças no que diz respeito ao prazer de tentar novos desafios, entre crianças das escolas montessorianas e das escolas convencionais. • Crianças na escola montessoriana demonstraram muito mais vontade de tentar novos desafios depois de um ou dois anos na escola montessoriana, com explicações como “Quero tentar porque acho que consigo”. 6. Prazer de Estar na Escola: • As crianças montessorianas sentem mais de prazer em estar na escola. • Isso indica que seu desempenho superior não ocorre às custas da perda do prazer de estar na escola e fazer atividades escolares. (Isso confirma resultados de 2006, inclusive). • O gráfico abaixo mostra médias, mínimas e máximas das medidas de prazer envolvendo atividades recreativas e de estudo nas escolas convencionais (cinza) e montessorianas (azul). 7. Criatividade • Ao longo de todo o estudo, não houve diferenças no que diz respeito ao desenvolvimento da criatividade, entre a média das crianças em Montessori e em escolas convencionais. Agora, ao meu ver, vem a parte mais interessante do estudo, na qual Lillard demonstra que Montessori pode consertar o desnível que existiria entre crianças de diferentes classes sociais na escola. Diferenças de Desempenho Envolvendo Classes Sociais e Funções Executivas 1. Diferenças entre Montessori e Escolas Convencionais • As crianças nas escolas montessorianas tiveram um desempenho acadêmico muito superior às crianças nas escolas convencionais, independente da classe social. • Quando isoladas por classe social, esse desempenho acadêmico continuou díspar. As crianças com renda familiar muito menor que estavam em escolas montessorianas tiveram desempenhos melhores que as crianças com renda familiar menor em escolas convencionais. 2. Diferenças (ou não) entre crianças com maior e menor renda famílias em Montessori • No início, havia uma diferença marcante entre crianças com maior e menor renda familiar, mesmo na escola montessoriana. Isso valeu para o primeiro ano inteiro. • No segundo ano, essa diferença se reduziu tanto, que se tornou estatisticamente insignificante. • No terceiro ano, reduziu novamente, mais 33%. • A diferença entre crianças de maior e menor renda familiar nas escolas convencionais envolvidas no estudo era estatisticamente muito superior à encontrada entre crianças das escolas montessorianas. • As crianças com maior renda familiar e matriculadas em escolas montessorianas foram as que tiveram o melhor desempenho do estudo, mas a diferença entre as crianças com menor renda familiar na escola montessoriana e aquelas da escola convencional foi marcante, e as montessorianas se saíam muito melhor no final da Educação Infantil. 3. Diferenças de Desempenho envolvendo diferentes desenvolvimentos de Funções Executivas • No início, um melhor desenvolvimento de funções executivas era indicativo de um melhor desempenho, tanto nas escolas montessorianas quanto nas escolas convencionais. • Ao longo das medidas, o desenvolvimento de funções executivas continuo sendo um indicativo importante de desempenho para as crianças em escolas convencionais. • Nas escolas montessorianas, o desenvolvimento de funções executivas não se mostrou um indicador relevante de desempenho. • As crianças das escolas montessorianas se saíram melhor, em geral, e isso inclui as crianças com um desenvolvimento de funções executivas pior. • Programas de reforço com o objetivo de melhorar o desenvolvimento de funções executivas são irrelevantes em escolas montessorianas, para equalizar desempenho. Há uma última seção do estudo sobre diferenças entre escolas públicas e privadas, convencionais, comparadas com escolas montessorianas envolvendo crianças com todos os níveis de renda familiar e desenvolvimento de funções executivas. Ela nos interessa menos porque as diferenças entre escolas públicas e privadas no contexto pesquisado é, em si, muito diferente das diferenças que encontramos aqui. Ainda assim, os resultados foram: 1. Desempenho acadêmico • Diferença marcante e favorável a Montessori, em comparação com escolas públicas e com escolas privadas. 2. Inteligência Social • Diferenças importantes entre Montessori e escolas públicas, mas não entre Montessori e escolas privadas. 3. Funções Executivas • Diferenças marcantes entre as crianças que foram para escolas montessorianas públicas e crianças que foram para escolas convencionais, também públicas. Os resultados são estes. Depois, Lillard continua para uma discussão dos possíveis motivos para esses resultados, que já não envolvem mais a mesma pesquisa, mas uma boa bibliografia pesquisada, tanto no meio científico específico da psicologia congnitiva quanto no que diz respeito a Montessori. Futuramente, podemos fazer mais um texto, detalhando a discussão que finaliza o artigo. Para nós, do Centro de Educação Montessori de São Paulo, os seus comentários são importantes. O que você vê na sua escola quanto ao que Lillard estudou? A implementação de uma aplicação mais fiel ao pensamento de Montessori vem favorecendo suas crianças de forma perceptível? Quando você recebe crianças de outras escolas, como é a evolução delas em Montessori, ao longo dos anos? Vai ser um prazer ler o que você tiver para adicionar à nossa discussão. Faz um par de meses. Era sábado, quase oito da manhã, frio de outono, e eu estava ansioso. Por três horas, receberíamos crianças em uma sala quase perfeita. Quase todos os materiais estavam bem dispostos, muitas plantas, mesas e cadeiras aqui e ali, espaço suficiente para as quinze crianças que viriam. Só havia dois problemas: eu não conhecia nenhuma delas, e todas elas estavam acostumadas a uma aplicação de Montessori que cedia em alguns aspectos nos quais, naquele dia, não cederíamos. Em nossa sala não haveria papel, intervalo, hora do lanche, roda... E eu não sabia nada sobre quem vinha lá. Somente que algumas das crianças representavam desafios para a equipe docente. Quais, restava-me (não) descobrir. Eu não preciso contar detalhes de como foi. Quase todos vocês que acompanham este blog sabem como é um primeiro dia. Só quero escrever sobre duas crianças. Detalhes serão mudados para preservar identidades. As histórias vocês também quase conhecem. Não são incomuns, e serão só uma ilustração.
O dia começou e ele chegou, ressabiado e com olhos grandes, os cabelinhos balançando enquanto abraçava o pai, meio incerto. Só entrou depois que me apresentei e pedi que fosse pegar a etiqueta com o seu nome. Quando perguntei com que queria trabalhar, escolheu uma atividade de vida prática e por uns dez minutos se entregou a ela. Não é a concentração do século, mas é um começo de dia tranquilo, sem dúvidas. E tranquilo foi o resto do dia. Umas três vezes o vi vagando sem rumo pela sala, em uma consegui oferecer trabalho, na outra ele se arranjou sozinho com um colega, e na terceira eu não sei. De outra vez estava, com um colega, desmantelando a área de leitura e eu interrompi, por tempo de menos e com confiança demais, o que fez com que eles mudassem de atitude, mas logo voltassem ao que estavam fazendo, e a excelente assistente da sala foi quem resolveu a situação no final. De resto, pintou, desenhou (duas concessões que decidimos fazer), trabalhou com Vida Prática e materiais sensoriais, esqueceu e não esqueceu tapetes atrás de si, e terminou o dia em paz, brincando na área aberta da escola. Em paralelo, ela também chegou. Olhos ainda maiores, a boca fazendo um bico que não passou quase a manhã toda (só num momento breve, quando acho que quase sorriu, depois de ficar muito tempo com uma jarra e três copos com água). Pensando em retrospecto, era quase um medo naquele rostinho redondo. Ela entrou (e eu sabia uma coisa só sobre ela: corria e pegava trabalhos dos outros. Não me preparei para nenhuma das duas coisas, de propósito) e também pegou sua etiqueta – depois de dois ou três lembretes. Sob sugestão, escolheu um trabalho de Vida Prática, ficou nele por quinze, vinte, perdi-a-conta de quantos minutos, e então um copinho bem pequeno caiu e quebrou. Não se mexeu muito. Continuou a atividade como se o copo estivesse lá ainda, molhando a mesa. Dei-lhe um copo descartável, recolhi o vidro, dei-lhe um pano, ficou mais dez ou doze minutos. Emendou com outra atividade de Vida Prática. Precisou de uma brevíssima interrupção para não fazer pilhas com os copos sobre a jarra, continuou firme por minutos e minutos a fio. Relaxou. Conseguiu interagir com os colegas. Trabalhou-brinco-atrapalhou um pouco, foi interrompida, voltou a quase estragar um material, foi interrompida... e o material foi tirado da sala depois da terceira interrupção. Nenhuma revolta. Nenhuma angústia. Procurou mais que fazer, e fez. E até o finalzinho do dia fez. E aí, nos últimos quarenta minutos, ficar sem ar livre estava demais para ela, e ela já brincava de apertar “botões de telefone” pela sala, fazendo sons com os lábios, de novo em bico. No parque descansou, na cama elástica, enquanto outras crianças pulavam e ela só sentia seu corpo. Foi para casa em paz. Depois do fim do dia, todas as crianças devolvidas às suas famílias, conversei com os mais de quinze professores que assistiram a tudo isso sentados em volta da sala. A professora da garota disse que ela trabalha focada mesmo, quando escolhe um material. Mas que nunca a tinha visto passar um dia assim tranquila. Nunca a tinha visto não interromper um colega, não brigar por atenção ou objetos. Atender tão prontamente a orientações – o que eu confesso, não me pareceu tanta prontidão assim. Em resumo, ela nunca estivera tão bem na sala. De resto, essa garota conquistara a quase-desistência de seus professores. Corria pela escola dia após dia, brigava, resistia a quase tudo, recusava-se a seguir qualquer sugestão. Mas eu fui muito mais surpreendido pela história do garotinho. Ele, que foi tranquilo quase a manhã toda, que seguiu quase todas as orientações como se a vontade fosse sua, e não minha, que trabalhou com sossego e descansou pintando e desenhando em paz... Ele batia diariamente em seus colegas, mordia sistematicamente, e era alvo de atenção constante e desafios constantes na escola. O garoto não bateu, não quis bater, não chegou perto de bater uma só vez. Ele era paz e desamparo. Com mais alguns dias, encontraria em Montessori o oásis que toda criança merece ter na vida. E a garota ... bom, ela encontrou no primeiro dia mesmo. Sua resposta, ao não sair da sala correndo nenhuma vez, por uma porta de acesso constantemente livre a todas as crianças, e sua resposta ao sair e retornar à sala, comunicaram o suficiente. E das duas horas e meia em que permaneceu em sala, por duas horas permaneceu em tranquilidade quase total, precisando da mesma presença adulta que muitas crianças precisam no início, e não mais. Que será que será? O que Montessori tem de tanto que em minutos, que ao entrar na sala, a criança descobre a paz? Que é que uma sala complemente montessoriana, com adultos e materiais, tem de tão óbvio ao espírito que uma criança em desespero e agressão descobre que ali a paz é possível e desejável? Que é que essa sala tem que sustenta, por três horas e muito trabalho, um outro garoto de quem não falei, e que não fica em paz por trinta minutos normalmente? Eu não sei por onde começar, mas entendo quem diz que há qualquer coisa de milagre. Não há. Mas parece mesmo. E essas três horas foram revolucionárias. Não porque eu não conhecesse Montessori ou as transformações que Montessori faz. Mas porque dessa vez eu não sabia quem mais precisava delas, e propositadamente não quis saber. O que fizemos, pelas três horas daquele sábado de outono, foi só Montessori, sem tirar ou por – pondo, na verdade, as falhas humanas que nos cabem – e assistir ao, direi, milagre que se anunciava a cada novo minuto. Para terminar, quero fazer um pedido a você, ao coração do teu peito que anseia por um mundo melhor: não tire nada, não ponha nada. Não crie nada. Não mude quase nada até ter muita certeza de sua mudança. Repita. Repita o que há mais de um século estamos repetindo, e uma a uma, a mente, a paz e, por que é que não digo?, a alma de cada criança encontrará o oásis de onde beber a vida. ___ Nota: Eu sei que não é assim todos os dias, com todas as crianças e todos os professores. A ideia desse texto não é fazer você se sentir muito mal porque hoje seu dia não foi assim. Eu já tive dias de sair da sala – de ir até a janela porque não podia sair da sala – e chorar. Atravessar esses dias foi e é essencial para minha transformação. O pedido continua: vamos repetir, dia a dia, o que se faz a mais de um século. E é assim, uma a uma, que ajudaremos nossas crianças a encontrarem a vida. Clique aqui para editar. Há alguns meses o blog do CEMSP publicou um texto sobre as vantagens de escolas que utilizavam Montessori de forma estrita, aderindo às ideias e práticas sugeridas por Maria Montessori, e as desvantagens das escolas que fazem concessões a práticas não-montessorianas, e que acabam por desenvolver um trabalho de qualidade inferior.
Muito frequentemente, o que ocorre em escolas montessorianas é que a(o) fundadora(-) ou a primeira direção da escola era um estudioso de Montessori, um professor formado ou alguém profundamente encantado pela criança. Posteriormente, a escola passa a ser administrada por educadores por vezes muito bons, ou por administradores também bons, mas que não têm o mesmo encanto, ou não enxergam a educação da mesma maneira. A escola se mantém “montessoriana”, porque não pode se chamar de nenhuma outra coisa, mas gradativamente abandona a liberdade, a escolha, a independência, e incorpora o uso de papel, apostilas, livros didáticos, atividades em grupo constantes e aulas extra no meio do dia. Pouco a pouco, a escola que se chama e se acredita montessoriana não ajuda as vidas das crianças mais do que uma escola tradicional razoável. Mas, lá dentro, em algum lugar, alguém sabe que deveria ser diferente. Não existe um caminho só para revitalizar a prática montessoriana de uma escola. O que sugiro abaixo deriva de minha experiência profissional com várias instituições e educadores, mas há caminhos os mais diversos. Também, o que sugiro aqui é um passo-a-passo que tem como primeiro objetivo ajudar você ou sua escola a acreditarem de novo em Montessori e na criança, para depois tomarem atitudes mais ousadas. Vamos lá? 1. Respire, sorria e vá devagar. Recebi esse conselho num blog de produtividade que citava um monge vietnamita. Depois de anos, li a mesma ideia em Creative Development in the Child, de Montessori. Hoje, estou convencido de que esta é a primeira mudança, a mais prática e a de maior impacto na sala. Treine respirar enquanto você caminha, treine caminhar no ritmo da respiração, e treine sentir alegria. Isso nos ajuda a enxergar pequenos milagres, que ocorrem mesmo em salas menos estruturadas, e ver os pequenos milagres nos dá energia e serenidade para perseguir nossos ideiais. Quando o adulto respira, sorri e vai devagar, a criança se tranquiliza e também consegue se sentir mais serena, alegre e disposta a trabalhar. Veja a citação de Montessori: Em lugar de executar as ações naturais de todos os dias, sem pensar, ou de maneira imperfeita, acreditamos que fazê-las de forma atenta, consciente, cuidadosa e tão perfeita quanto possível, é o primeiro passo para alcançarmos a perfeição. Esse é um dos caminhos, existem muitos. Devemos fazer as coisas porque devemos fazê-las, e devemos fazemos como elas vierem. Devemos usar tudo, para que aperfeiçoemos tudo. Se tornar mais consciente, esse é o caminho da perfeição; quanto mais ideias, quanto mais ações executamos, mais vamos dominando, mais perfeitos nos tornamos. Essa é a orientação no sentido da perfeição. […] O caminho da perfeição é aquele no qual todas as ações que executamos em nossas vidas, nós pensamos, e executamos como um meio de chegar à perfeição. – Maria Montessori, Creative Development in the Child Conforme você faz as coisas mais devagar na sala, aproveite para observar as crianças. Caminhe sempre com um bloquinho de anotações no bolso, e um par de canetas. Assim, a qualquer momento, você pode escrever aquilo que lhe parecer importante. Como treino, tire quinze minutos por dia, por professor, para observar as crianças sem interferir em suas ações, para passar a conhecê-las melhor. Procure fazer anotações bastante objetivas, que incluam aquilo que aconteceu, mais do que a sua opinião sobre o assunto. 2. Trabalhe o layout da sala. A sala montessoriana tem um layout bem variável, mas bem específico também. Em muitas escolas, é comum que as estantes fiquem em volta da sala, e no meio fiquem mesas e a Linha, com espaço livre para os tapetes. O layout mais adequado é um pouco diferente. Na sala montessoriana, deve haver nichos para materiais Sensoriais, de Linguagem, de Aritmética, de Vida Prática, Ciências, História e Geografia. O layout aberto e comum não inviabiliza Montessori, de fato, escolas boas o utilizam, inclusive. Mas modifica-lo pode ajudar bastante. Nele, pode haver mais eco, um caminhar muito mais veloz por parte das crianças, um aglutinamento mais frequente e, portanto, uma dificuldade maior na individualização do trabalho. Se as crianças já encontraram seu equilíbrio interior natural, isso é menos importante. Mas se a escola precisa retornar a Montessori e ajudar as crianças, isso importa. 3. Recupere a Vida Prática. Marion Wallis, diretora do CEMSP, escreveu um ótimo texto sobre Vida Prática aqui. Pensando a partir dele, é fácil entender porque a Vida Prática é fundamental para a revitalização de uma sala ou escola. Você não deve incluir a Vida Prática toda de uma vez, se ela se perdeu, mas algumas coisas são importantes: (1) os exercícios precisam ser bonitos e os objetos precisam ser de tamanhos adequados às mãos das crianças; (2) precisa haver alguns exercícios com água; (3) deve haver demonstrações de cada atividade para a criança conforme ela progride; (4) precisa haver Vida Prática dentro da sala, e não só em uma área específica da escola. 4. Recupere a Livre Escolha devagar. Talvez hoje sua escola trabalhe frequentemente com atividades coletivas, rodas, projetos coordenados pela professora e coisas assim. Mudar isso não acontece da noite para o dia. Inclua pequenas opções no começo (usar papel verde ou azul; fazer primeiro isto ou primeiro aquilo; cortar círculos ou quadrados...) e observe como o bem-estar das crianças melhora. Depois, inclua períodos (20, 30, 40 minutos) de livre escolha no dia, em que as crianças podem fazer qualquer das atividades dispostas nas estantes. Veja como isso, aliado aos três passos anteriores, aumenta a tranquilidade e o foco dos alunos. 5. Viva a Natureza! A natureza é parte integrante do currículo montessoriano, e é fundamental para o desenvolvimento da criança que isso seja levado muito a sério. Você pode ver aqui os vídeos de um seminário sobre Infância e Natureza realizado ano passado pelo Instituto Alana, e aqui você pode se inscrever para o deste ano. Coloca plantas na sala. Muitas plantas. E coloque plantas na área externa, nos corredores, no parque, em todos os lugares onde couber plantas. Se você puder encontrar espaço para um aquário minimamente confortável, também coloque peixes na sala. Você verá que essas pequenas modificações aumentam a capacidade de observação das crianças, sua compaixão e sua colaboração. 6. Formação dos Professores e Administradores. Desde o começo, é importante que a equipe da escola, pedagógica e administrativa, seja formada em Montessori. A formação do professor é da maior importância para o bom funcionamento da escola e para que as vidas das crianças sejam genuinamente auxiliadas pelos adultos da instituição. A formação pode acontecer desde o início do processo, mas, se você não está convencida(o) ou se precisa convencer sua equipe, passe pelos cinco primeiros passos primeiro. A formação do CEMSP recomeça, a partir do primeiro módulo, em janeiro de 2018. Se eu estivesse no seu lugar, deixaria a página do CEMSP como página inicial do seu navegador para ficar atento ao período de inscrições e formar-me ou formar minha equipe. 7. Estruture um grupo de estudos na instituição. Quando alguns profissionais da escola tiverem um pouco mais de conhecimento de Montessori – ou porque são formados, ou porque já estudam há mais tempo – ou mesmo quando a escola sentir que há disposição coletiva, é muito importante criar um grupo de estudos de Montessori. Nesse grupo, principalmente duas coisas devem acontecer: vocês devem ler os livros de Montessori e textos sobre Montessori, podem também assistir a vídeos, e devem ligar aquilo que aprendem na teoria com as observações que desenvolvem sobre as crianças. O blog do CEMSP traz bons textos. Em português, você pode usar também a Escola Maria e o Lar Montessori, também no YouTube. Se você está começando uma escola, ou planeja começar, esse manual também é útil. Em inglês, há muitos outros locais para estudar. O Montessori Guide é meu favorito, mas vale a pena explorar as páginas da American Montessori Society, da Association Montessori Internationale (incluindo o AMI Digital) e do National Center for Montessori Education in the Public Sector. Para estudar materiais, gosto do Info Montessori e o Montessori Commons. 8. Convide profissionais a qualquer momento. Uma prática muito valiosa é convidar profissionais de dentro e de fora da escola para observarem e opinarem sobre sua prática. Se um professor puder observar outro e oferecer suas percepções e sugestões, a sala ganha com isso. Se um colega puder ir à escola para observar e conversar com a equipe ou a direção, também há chances grandes de a escola ganhar pontos de vista valiosos sobre a prática. Isso é uma das vantagens do estágio exigido durante cursos de formação em Montessori pelos centros de formação mais sérios e exigentes, mas você não precisa parar no estágio. Pode continuar com o exercício ao longo de sua atividade. Uma das transformações mais belas que há é aquela de uma escola que acreditava fazer Montessori em uma que efetivamente faz Montessori. Muda tudo. O humor da equipe se altera, sua disposição para um bom trabalho aumenta, a satisfação dos profissionais e sua retenção na escola muda, e as famílias percebem a transformação em suas crianças. As crianças são as maiores beneficiadas, é claro. Seus olhos ganham brilho, sua atitude diante de desafios se transforma, elas se descobrem pacíficas e felizes. Por isso, seu desempenho acadêmico melhora também. O que ocorre quando a escola não confia na criança e em Montessori, é que passa a usar só pedaços de Montessori com as crianças, e preenche parte do dia com outras pedagogias e outras iniciativas. Quando isso acontece, o potencial da escola, da pedagogia e das crianças é afetado, e aí realmente as coisas dão menos certo, e a escola acredita que isso ocorre porque Montessori não é suficiente. Então, aumenta ainda mais os “adicionais” como aulas extracurriculares, um uso cada vez maior de papel e de atividades coletivas, também colocando muitos brinquedos e materiais não-montessorianos na sala. É um ciclo vicioso. Quando a escola retorna a Montessori, e recupera sua confiança na criança, chamo o processo de revitalização, porque é a vida que retorna. Aos poucos, os adicionais podem ser abandonados, e vemos as crianças cada vez melhores consigo e com o mundo, e nossa confiança nelas e em Montessori aumenta, encorajando-nos a abraçar Montessori como a única pedagogia da escola, e confiar nas crianças como as únicas capazes de nos mostrar o verdadeiro caminho da educação. Em 2006 um artigo publicado na revista Science abriu sorrisos em toda a comunidade montessoriana. Angeline Lillard, professora da Universidade de Virgínia, parecia provar que Montessori era mesmo melhor do que as outras abordagens de educação. Os resultados que davam suporte a Montessori iam desde o aprendizado de leitura e matemática, até as relações entre as crianças. Nós ficamos profundamente satisfeitos. Tão satisfeitos, de fato, que por vezes deixamos passar em branco o final do artigo original, em que a autora nos diz: “Seria útil replicar essas pesquisas em diferentes escolas montessorianas, que variam muito. As escolas envolvidas aqui eram afiliadas à Associação Montessori Internacional, que tem uma aplicação [de Montessori] relativamente rigorosa. [...] Ao menos quando estritamente implementada, a educação montessoriana nutre o desenvolvimento de habilidades sociais e acadêmicas iguais ou superiores aos de uma série de outras escolas”. O comentário final de Lillard é de importância total. O rigor científico da autora, comparável ao de Montessori ela mesma, exige dizer que os resultados excelentes encontrados referem-se a um tipo específico de uso de Montessori, relacionado à fidelidade das escolas às propostas originais de Montessori. Ocorre que, ao longo de anos, depois, Lillard retornou aos estudos sobre Montessori, e encontrou pelo menos o que faz variar a fidelidade às ideias de Montessori na prática das escolas. Em um primeiro artigo (de 2012), Lillard propõe quatro características como determinantes de um programa de aplicação de Montessori com alta fidelidade:
Quanto às adaptações que determinam a fidelidade mais baixa à proposta original de Montessori, Lillard propõe cinco itens:
A autora nos explica que diversos estudos, com resultados diferentes, já foram feitos envolvendo Montessori. Alguns com bons resultados para nós, outros nem tanto. Longamente, expõe os estudos com bons e maus resultados, e nota que todos aqueles com bons resultados foram feitos em escolas que seguiam os primeiros quatro determinantes de alta fidelidade, enquanto que os resultados menos positivos foram encontrados com escolas que utilizavam pelo menos um dos determinantes de baixa fidelidade. Em seguida, expõe seu estudo atual: uma comparação do desempenho de crianças em dois grupos de escolas montessorianas. No primeiro grupo, utilizava-se somente o material montessoriano, havia um ciclo de trabalho de três horas todos os dias, e um adulto na sala era claramente o professor, responsável pela maior parte das interações com as crianças, enquanto o outro adulto cumpria muito mais frequentemente o papel de observador. No segundo grupo, utilizava-se material e brinquedo suplementar (como Lego, quabra-cabeças, livros de exercícios, projetos de artesanato e jogos da memória), o ciclo de trabalho era quebrado algumas vezes por semana por aulas extracurriculares, e um segundo adulto interagia com as crianças com tanta frequência quanto o primeiro. O estudo também propõe uma comparação com escolas tradicionais de alta qualidade (a descrição das escolas tradicionais pode ser lida no artigo original). Algumas variáveis entre as escolas foram testadas e não se encontrou diferenças significativas de desempenho entre os alunos. Essas variáveis foram desde anos de experiência dos professores até o tipo de certificação (AMI/AMS) dos professores montessorianos. Outras variáveis foram consideradas importantes, como escolarização das famílias, por exemplo. Tudo levado em conta, os resultados foram: Identificação Letra-Palavra: Os alunos das escolas de maior fidelidade a Montessori avançaram 11,28 pontos ao longo de um ano. Os das escolas de menor fidelidade, 5,61 pontos. Os das escolas tradicionais, 5,90 pontos. A diferença significativa é entre as escolas Montessori de maior fidelidade e ambos os outros programas. Vocabulário com Figuras: Os alunos das escolas de maior fidelidade a Montessori avançaram 2,92 pontos ao longo de um ano. Os das escolas de menor fidelidade, 0,95 pontos. Os das escolas tradicionais, 1,08 pontos. A diferença significativa é entre a escola Montessori de maior fidelidade e a de menor. A diferença entre o programa Montessori de maior fidelidade e o tradicional, aqui, é interpretada como pequena demais para ser considerada. Problemas: Os alunos das escolas de maior fidelidade a Montessori avançaram 4,58 pontos ao longo de um ano. Os das escolas de menor fidelidade, 3,09 pontos. Os das escolas tradicionais, 3,53 pontos. A diferença significativa é entre a escola Montessori de maior fidelidade e a de menor. A diferença entre o programa Montessori de maior fidelidade e o tradicional, aqui, é interpretada como pequena demais para ser considerada. Seguir ordens confusas: Os alunos das escolas de maior fidelidade a Montessori avançaram 13,72 pontos ao longo de um ano. Os das escolas de menor fidelidade, 7,34 pontos. Os das escolas tradicionais, 7,85 pontos. A diferença significativa é entre as escolas Montessori de maior fidelidade e ambos os outros programas. Resolução de problemas de interação social: Os alunos das escolas de maior fidelidade a Montessori avançaram 0,33 ponto ao longo de um ano. Os das escolas de menor fidelidade não mudaram. Os das escolas tradicionais tiveram uma diminuição de -0,07 ponto A diferença significativa é entre a escola Montessori de maior fidelidade e o programa tradicional. A diferença entre o programa Montessori de maior fidelidade e o de menor, aqui, é interpretada como pequena demais para ser considerada. Teorias da mente: Os alunos das escolas de maior fidelidade a Montessori avançaram 0,39 ponto ao longo de um ano. Os adas escolas de menor fidelidade, 0,26 ponto. Os das escolas tradicionais, 0,12 ponto. Nenhuma dessas diferenças é significativa. Fica evidente pelos resultados que as escolas montessorianas de maior fidelidade ao método estabelecido por Maria Montessori oferecem ganhos superiores às crianças. Sobre a fidelidade e a adaptação, Lillard escreve: “Precisamente a adaptação de Montessori nos Estados Unidos [onde o estudo foi conduzido] , incluindo sua abertura para a presença de materiais suplementares, pode ser a chave para sua permanência. [...] É irônico que o próprio elemento que pode aumentar a sobrevivência de um programa possa também reduzir sua eficácia, embora seja importante notar que os programas montessorianos suplementados [os de menor fidelidade] ficaram em geral equiparados a programas tradicionais de alta qualidade estudados aqui” (grifo nosso). O grifo em que insistimos na citação acima tem um propósito. Ele significa que mesmo uma escola montessoriana de menor fidelidade em relação às ideias de Maria Montessori ainda tem chances de ser uma escola boa, num nível comparável ao de escolas tradicionais também boas. Infelizmente, entretanto, não é a mesma coisa, para o desenvolvimento infantil, propor uma escola montessoriana que faça por aderir completamente às ideias de Montessori, e propor uma que adapte elementos do método. Na adaptação, aparentemente, não se ganha muito (a não ser, é claro, a própria sobrevivência do método). Mais uma vez, é importante retornarmos a Montessori, e retomarmos esforços para a construção de uma escola que, sem adaptações, traga para o presente aquilo que parece ser, até aqui, o melhor programa educacional possível, aderindo ao máximo às ideias de Montessori. Vale notar que as escolas de maior fidelidade pesquisadas eram ligadas à Associação Montessori Internacional, mas os fatores determinantes enumerados por Lillard não foram retirados de cursos de formação ou de entrevistas com professores, mas de livros de Maria Montessori. O ponto de partida nos livros de Maria Montessori pode ser comum a qualquer escola e qualquer formação – em centros especializados ou dentro da escola, entre equipes e coordenações – e, partindo das ideias de Montessori, podemos ir muito longe. Temos um longo e possivelmente belo ano letivo pela frente. Vamos fazer dele um ano de ajudar a vida? __________
Referências: Artigo de 2006 - Evaluating Montessori Education (Angeline Lillard): http://www.public-montessori.org/sites/default/files/resources/Lillard_science_article_9_29_2006.pdf Artigo de 2012 - Preschool children's development in classic Montessori, supplemented Montessori, and conventional programs ( Angeline Lillard): http://www.faculty.virginia.edu/ASLillard/PDFs/Lillard%20(2012).pdf “Leis e tratados não são suficientes; o que é preciso é um mundo novo, cheio de milagres” – Maria Montessori Estamos todos, em diferentes graus, acompanhando a tragédia que se desenrola na Síria, e nesse momento especialmente em Aleppo, onde milhares de crianças já se encontram desabrigadas, sozinhas, no meio de um conflito do qual não podem sair ou ser retiradas. Aleppo já foi a maior cidade da Síria, e era o centro financeiro e industrial do país. Hoje, é uma cidade cheia de morte, ruína e medo. Em toda a Síria, quase meio milhão de pessoas já morreram e cerca de 5 milhões deixaram o país. A ONU disse que são necessários US$ 3,2 bilhões para prover ajuda humanitária a 13,5 milhões de pessoas - incluindo seis milhões de crianças - no país. Além disso, 70% da população não tem acesso a água potável, uma em cada três pessoas não consegue suprir as necessidades alimentares básicas, mais de 2 milhões de crianças não vão à escola e uma em cada cinco indivíduos vive na pobreza. (BBC) 3,2 bilhões de dólares. Parece bastante dinheiro. Mas é menos do que o gasto militar de um só dia no mundo. Um dia de trégua poderia prover ajudar 13,5 milhões de sírios. Vale dizer que com oito dias, segundo a Nobel da Paz Malala Yousafzai, poderíamos prover escola gratuita para toda a população infantil do planeta. Racionalmente, seria uma ideia genial passar uma semana em trégua no mundo todo, e resolver um dos maiores problemas da civilização. Por que insistimos na guerra? Montessori tem uma resposta. Para ela, as diferentes guerras entre países, por dinheiro, ideologia, poder e território, tinham uma raiz em comum: a guerra entre o adulto e a criança. Da mesma maneira que uma alimentação ruim ou uma má higiene são origem de muitas doenças, a guerra entre adulto e a criança é a origem de inúmeros conflitos. Ela diz: O que nos impressionou em particular foi a existência de um conflito verdadeiro, de uma luta sem trégua, que espera o ser humano desde o seu nascimento e o acompanha por todo o seu crescimento – é o conflito entre o adulto e a criança [...] O adulto e a criança – ambos inconscientes de suas características – estão envolvidos em uma guerra de eras [...] O adulto triunfa sobre a criança de forma que, quando a criança cresce, traz gravadas para sempre as marcas daquela famosa paz que sucede a guerra, feita, por um lado, de destruição, e por outro de uma adaptação dolorosa. (Montessori, Peace and Education, 1971) É claro que nenhum adulto gostaria de entrar em guerra com as crianças e que, de novo, racionalmente a paz é muito melhor. O que origina esse conflito-raiz é a inconsciência de nossos potenciais e dos de nossos alunos e filhos. Nós somos diferentes em muitos aspectos, e um dos principais deles é o trabalho que temos a desenvolver. O adulto trabalha para produzir o mundo, e por isso tem objetivos externos a si mesmo, controla seu tempo por meios “objetivos”, como o relógio e o calendário, e precisa atingir níveis de perfeição ou de sucesso estabelecidos por consenso ou imposição social. Pense, por exemplo, em um trabalhador industrial clássico, que deve fazer algumas centenas de parafusos por dia, e um número menor e regular por hora, de forma que todos eles tenham exatamente o mesmo diâmetro e funcionem da mesma forma. Ou considere um chef de cozinha, que por mais genial e criativo que possa ser, deve produzir um cardápio que agrade a seus clientes e críticos, numa velocidade que não os deixe esperando por muito tempo, com uma qualidade regular o suficiente para inspirar confiança. Nos dois casos, há também o ganho financeiro, exterior ao indivíduo, e que importa imensamente. A criança é o avesso disso tudo. Ela trabalha para produzir a si mesma, e seu único objetivo é satisfazer às necessidades interiores de sua mente e corpo, por isso o tempo de suas ações é controlado pelo ânimo, frustração, vontade, satisfação e cansaço. Os níveis de perfeição em geral cada vez mais altos de suas ações têm menos a ver com a necessidade de satisfazer o outro do que com o desejo de melhorar a si mesmo. É assim que uma criança pode passar vinte ou quarenta minutos concentrada em algo aparentemente inócuo, como fazer um buraco em areia, mesmo enquanto ele é novamente preenchido pela areia que não cessa de cair, enchendo o buraco de novo. É assim, também, que um aluno montessoriano pode se dedicar, repetidamente, a um mesmo esforço, como pintar o interior de uma forma geométrica ou encaixar corretamente os sólidos do Cubo do Trinômio. O adulto tem a mesma dificuldade de compreender a criança que a criança tem de se adequar ao adulto. Mas a criança precisa se manter no seu modo de produção de si mesma, enquanto que ao adulto cabe compreender as necessidades e potenciais dela, e protegê-los inclusive de si mesmo. A inconsciência dessa diferença profunda entre adulto e criança é uma – não a única – das causas importantes do conflito que assola todo o mundo e que gera todas as guerras da Terra. Proteger a realização dos potenciais da criança é proteger a capacidade de redenção de toda a civilização. Uma das formas mais belas e importantes de se fazer isso é ajudar a criança a amar o mundo, entrar em contato com ele e trabalhar, de forma concentrada e profunda, para a construção de si mesma. A criança, segundo Montessori, é a construtora da humanidade. Ela sempre é a construtora da humanidade. A humanidade que ela constrói, entretanto, varia. Em condições adversas, constrói mal. O resultado da formação interior da criança, quando submetida a toda sorte de humilhações, privações e opressões é tortuoso, incerto, incapaz de conhecer a si mesmo. Quando, por outro lado, as condições de desenvolvimento são adequadas, a criança é capaz de milagres por si e pelo mundo. Outro ponto fundamental da construção da paz na infância é o respeito à importância da mente absorvente. A mente da criança de zero a seis anos é muito mais do que uma esponja. Ela não é só capaz de sugar tudo aquilo que acontece à sua volta, aprender rapidamente e se desenvolver de forma rápida e eficiente. Não. Ela é capaz de transformação. E transforma-se conforme a natureza do ambiente que encontra. Os estímulos que a mente recebe do mundo não entram nela, eles a transformam e passam a fazer parte da personalidade da criança. Daí, a importância total de uma escolha criteriosa daquilo que a mente de nossas crianças consumirá. Quando uma criança presencia brigas constantes – entre pai e mão, entre professor e aluno, entre aluno e aluno... – ela não aprende a brigar. Isso é pouco, e qualquer um faz. Ela se transforma em uma mente ansiosa, estressada e potencialmente violenta. Os resultados da presença constante do estresse na vida de uma criança são devastadores não porque ela aprenda a briga, aprenda a correria, aprenda a impessoalidade ou a estupidez. Mas porque ela se transforma nesse estresse, nessa ansiedade e nessa violência, e a perpetra contra si mesma e contra o mundo exterior. Só se dá o que se é. Se enxergarmos a importância de um novo mundo, precisamos de “uma educação capaz de salvar a humanidade” (Montessori definia assim sua pedagogia em A Educação e a Paz, ed. Papirus). Não nos basta uma educação veloz, eficiente, universal. Nós precisamos universalizar a transformação da humanidade, e isso significa, por um lado, proteger e respeitar o trabalho da criança, e por outro, proteger e respeitar a formação de sua personalidade. Há, é claro, outros aspectos importantes para uma relação pacífica entre adultos e crianças. Aqui, enxergamos só dois deles. Que por meio do profundo respeito, amor e reverência à infância, todos feitos de conhecimento, empenho e ação verdadeira, nós possamos não só prevenir Aleppo, mas transformar a própria forma como a vida e o mundo serão vistos pelos adultos de depois de amanhã. Que eles sejam capazes de ver o mundo anunciado por Montessori: novo, e cheio de milagres. Montessori escreveu: Uma das dificuldades que encontramos em ensinar nosso método aos que foram formados em outros sistemas é aquela de impedi-los de interferir na atividade de uma criança que está preocupada com um erro que cometeu e faz tentativas repetidas de corrigir-se. [...] De fato, enquanto a criança está instruindo a si mesma e o material que ela usa contém seu próprio controle de erro, o professor não tem nada a fazer a não ser observar. (The Discovery of the Child – The Technique of the Lessons) O material montessoriano tem algumas características que ajudam no processo da autoeducação. Em primeiro lugar, são objetos feitos para serem manipulados pelas crianças. As dimensões, o peso, a forma e as cores dos materiais foram escolhidos para chamar a atenção dos pequenos para aspectos específicos que os levam a aprender sozinhos pela manipulação dos objetos. Em segundo lugar, os materiais trabalham uma só característica ou dificuldade de cada vez – o peso, a cor, a dimensão, ou qualquer outro aspecto importante, é trabalhando isoladamente do resto, e embora um mesmo material ajude a criança a aprender muitas coisas, é só uma coisa absolutamente nova que ela aprende com cada item, de forma mais próxima do consciente. Finalmente, em terceiro lugar os materiais contêm o controle do erro. Se quiser, você pode ler mais sobre isso aqui. O controle do erro é uma característica do material ou da interação entre o material e a criança que permite a ela prescindir da constante correção e dos constantes apontamentos do professor e trabalhar, por si mesma, sobre as dificuldades que encontra. É neste contínuo trabalho de correção dos próprios erros e repetição dos próprios acertos que a criança aprende sem que o professor ensine tudo, detalhe por detalhe. É bem verdade, o professor apresenta o material. Mas depois, exclui-se da cena, retira-se, permite que a criança encontre a si mesma na atividade que desenvolve. Enfrentar a própria frustração é um importante exercício para a formação da personalidade, enquanto que enfrentar a frustração imposta por um ser maior e mais competente que resolve tudo o que a criança não sabe fazer é um exercício que não leva a mais do que o crescimento da vergonha como componente formador da personalidade infantil. Em uma de suas obras, Montessori diz que quando o adulto faz pela criança, tudo o que ela aprende é que o adulto sabe fazer. Ela não aprende, efetivamente, a fazer. Marion Wallis, do Centro de Educação Montessori de São Paulo, diz algo que Montessori formula de diversas maneiras em sua obra: ensine ensinando, não corrigindo. Quando uma criança tem uma dificuldade e precisa aprender alguma coisa nova, cabe-nos ensinar. Encontrar o material certo, a atividade certa, a apresentação certa, o ângulo certo da apresentação que enfoque a dificuldade encontrada pela criança, e em silêncio ensinar – ou falando baixo e educadamente, caso se trate de uma lição de graça e cortesia envolvendo interação entre pessoas. Mas nunca nos cabe corrigir o erro no trabalho da criança. Para Montessori (Mente Absorvente – O Erro e Sua Correção) há dois tipos de erro. Um é o erro do trabalho. A criança faz pares de cores errados, escreve errado, faz contas erradas, despeja a água e deixa gotas caírem para fora da jarra, caminha na linha, mas erra os pés, esbarra nas mesas da sala, faz barulho ao empurrar a cadeira. Outro erro é de atitude. A criança empurra o colega, joga um cubo cor-de-rosa, grita em sala, propositadamente derruba sua comida, sobe em uma estante de materiais. No primeiro caso, nos erros de trabalho, nós observamos até o limite. Até o momento em que a criança desiste e guarda o material ou desiste e permite que sua frustação transborde. Se ela guarda o material, não fazemos nada. Se ela chora, grita ou espalha o material no chão, então nos aproximamos (com um pouco de observação, é possível antecipar esse momento em alguns instantes e prevenir o mal feito ou a crise maior) e ajudamos a criança a se controlar novamente, e a guardar o material, guiando-a para outra atividade, mais fácil e que saibamos ser de seu gosto. No segundo caso, interferimos sempre. Não deve haver nenhuma tolerância para ações que sejam danosas para a própria criança, outros seres vivos ou o ambiente. Nesses casos, Montessori diz que devemos sufocar e destruir o erro. Isso, entretanto, é feito com o máximo de carinho e cuidado, embora com seriedade. Nunca, em nenhuma hipótese, cabe-nos a agressão contra a criança, ainda que só em um olhar. Interrompemos, sim, chamando, encostando se muito, segurando, se a extrema necessidade exigir, com cuidado e respeito. E então, tendo interrompido a má ação, resolvemos o necessário (varrer algo quebrado ou derramado, consolando um colega, tratando de um conflito), convidamos a criança para uma atividade em companhia do professor, ou para algo que, de novo, saibamos ser fácil para ela e agradável, para que encontre de novo seu próprio equilíbrio, relembre as necessidades coletivas da sala e possa retornar, sozinha, a um estado emocional que permita a interação saudável com os colegas e o ambiente. Montessori continua: As professoras da Casa das Crianças devem compreender duas coisas: que dirigir é responsabilidade da professora, e que o exercício individual é responsabilidade da criança. Somente depois de ter fixado isso claramente em suas mentes elas podem proceder racionalmente à aplicação de um método que guia a educação espontânea da criança e transmite conceitos essenciais. Este é um texto de presente para a turma que começa sua formação em julho de 2016 pelo Centro de Educação Montessori de São Paulo, com votos de que essa seja uma das principais transformações de suas vidas. Um grande abraço! Estamos acostumados a dizer que Montessori é uma revolução na educação. Reconhecemos a profunda mudança de perspectiva necessária para uma sala na qual as crianças possam aprender sozinhas, onde o professor interfira o mínimo possível e onde as punições e os prêmios não formem a base da disciplina alcançada. Nós aceitamos, embora com alguma dificuldade às vezes, muitos dos aspectos importantes de Montessori. Resistimos, com imensa frequência, a um deles, ao que diz (em Pedagogia Científica): É um princípio, diz Montessori, "do mais alto interesse pedagógico" (Pedagogia Científica). Por isso, neste texto, quero verificar com você algumas das vantagens do mínimo necessário e algumas das desvantagens do máximo possível. Na terceira parte dele, veremos um resumo de um artigo publicado em maio deste ano (05/2016) no Journal of Montessori Research.
1. Vantagens do mínimo necessário. A criança vive, desde sempre, em um ambiente estimulante. A casa onde mora, as ruas por onde passa, as pessoas, os bichos e as máquinas que vê, as imagens e os sons que a circundam, as cores, os cheiros, os gostos, as infinitas palavras: tudo isso é estímulo e tudo isso é motivação para aprendizado e curiosidade. Montessori nos diz que a criança não é um ausente do mundo. Ao contrário, encontra-se bem presente na realidade e deseja compreendê-la e absorvê-la completamente. Por isso, o material limitado em quantidade é um auxílio importante para a criança. Ele servirá, então, para colocar ordem em sua mente. O material é como um mapa, uma segurança à qual a criança pode recorrer para acertar sua rota, reafirmar aprendizados ou, mais habitualmente, compreender a direção para onde deve seguir diante de tantas novidades apresentadas pelo mundo. Em poucas palavras: o material montessoriano é um conjunto de meios para o desenvolvimento - ele não é um conjunto de materiais didáticos. E essa é uma distinção fundamental. O material limitado em quantidade permite à criança (1) uma organização mental precisa, tanto do mundo quanto de sua sala de aula, (2) a repetição com menores tentações para um desvio do caminho - se há materiais demais, a criança repete menos, e tem menos chances de se desenvolver nas habilidades às quais os materiais montessorianos dizem respeito, e (3) o tédio, vez por outra, que é uma condição importante para o nascimento da criatividade - é só diante do tédio, do descanso, e da desocupação, que a criança tem chance de observar o mundo e descobri-lo em suas várias naturezas: biológicas, sociais e ambientais, por exemplo. Finalmente, o limite de materiais, essa característica crucial do ambiente montessoriano, permite à criança uma maior utilização do material montessoriano justamente. Pela eliminação dos quebra-cabeças, dos blocos de empilhar, do lego, das inúmeras atividades em papel que seriam apostiladas numa escola comum e abandonam a apostila e vão para a bandeja na escola "montessoriana", abandonando tudo isso, entram em cena os blocos cor-de-rosa (a Torre), os prismas marrons (a Escada) e as barras vermelhas. Entram os fusos, as letras de lixa, o alfabeto móvel. Entra em cena aqueles materiais que foram desenvolvidos com intensa pesquisa sobre sua forma, utilização e benefícios. E saem aqueles que foram comprados, impressos ou fabricados porque são bonitos e as crianças gostam. Em uma pedagogia científica, nosso critério de seleção precisa ser muito mais exigente do que esse. Na última parte deste texto veremos qual a vantagem de uma convivência maior com o material montessoriano. 2. Desvantagens do máximo possível Montessori diz: "Enganamo-nos pensando que a criança "cheia de brinquedos", sempre cercada de ajuda, "deveria ser a mais evoluída". Muito pelo contrário, a multidão desordenada de objetos agrava seu estado de espírito semeando nele, novamente, o caos, oprimindo-a e desencorajando" (Pedagogia Científica). Quando a sala montessoriana tem materiais demais, a primeira coisa que se nota é uma grande dificuldade para que as crianças atinjam o que chamamos de normalização e que, de fato, é a única justificativa para a existência de uma sala montessoriana para crianças entre três e seis anos. Montessori disse que "antes da concentração não há educação", e o que acontece na sala com muitos materiais é uma busca inglória por educar crianças que ainda não se concentram, por educar seus cérebros sem educar suas mãos e por ocupar as crianças todo o tempo, sem maiores preocupações com a qualidade da atividade a que a criança se dedica. O excesso de materiais leva a algumas organizações inaceitáveis de sala de aula, como por exemplo a presença de tantas bandejas em uma estante que a mão da criança não cabe entre uma e outra, para que ela possa escolher e pegar o que quer. Com grande frequência, os materiais - especialmente de Vida Prática - precisam ser codificados por cor para que possam ser guardados novamente, e aqui eu não trato da preocupação estética com a beleza do conjunto do material, que admite inclusive uma escolha de cores, mas da necessidade imperiosa de que tudo tenha a mesma cor porque, se assim não for, nada retorna ao lugar correto. A sala com muitos materiais diminui o retorno ao mesmo material, por parte da criança, que sempre encontra uma novidade interessante. O retorno ao material importa: é indo várias vezes a ele que o aluno perceberá seu próprio amadurecimento e fará de si mesmo um mestre em algumas das habilidades envolvidas ali. O retorno ao material permite a percepção de detalhes, o refinamento sensorial elevado, a concentração na evolução da habilidade. Caso contrário, sem o retorno, as escolhas são sempre pelos materiais de final aberto, que não exigem amadurecimento sensorial da criança, envolvem pouquíssimo controle de erro ou são de papel e excluem a mão do processo da aprendizagem. 3. Um estudo importante para nós Montessori é uma pedagogia científica, antes de ser qualquer outra coisa. Por isso, devemos sustentar nossa prática em ciência, em experimentação controlada, e em estudo. Hoje em dia, possivelmente a principal personalidade envolvida na ciência de Montessori seja Angeline Lillard. Pesquisadora e professora na Universidade de Virgínia, Lillard é Diretora do Laboratório de Desenvolvimento Infantil na universidade e publicou, em 2005, o livro Montessori: The Science Behind the Genius - em que identifica as bases científicas atuais para diversos aspectos de Montessori -, bem como um artigo, em 2007, na Revista Science, no qual investiga os resultados da educação montessoriana, em contraste com os da educação tradicional. Em maio deste ano, Lillard publicou um novo artigo, este para o Journal of Montessori Research, buscando compreender as vantagens e/ou desvantagens de ter ou não materiais alternativos a Montessori em uma sala montessoriana. Em resumo, o método da pesquisa foi escolher três salas com professoras montessorianas formadas nas quais havia material suplementar (não-montessoriano) e material montessoriano clássico. O material suplementar foi retirado de duas salas, e mantido em uma. No começo do processo, experimentos determinaram o desenvolvimento das crianças em leitura, matemática, funções executivas, vocabulário, habilidades sociais e conhecimentos sociais. Nos testes iniciais, as criança tiveram os mesmos resultados, na média (a não ser pelo teste de funções executivas. Neste, as crianças da sala que continuaria com material suplementar saíram na frente). Ao final de quatro meses os testes foram aplicados novamente. Como resultado, Lillard e Heise descobriram que:
Sucintamente, esses resultados devem colocar todo professor montessoriano para pensar: não existe nenhum benefício em ter materiais não-montessorianos na sala de aula montessoriana. Mais testes precisam ser feitos, é claro. Mas até o presente momento, Montessori e as pesquisas mais atuais apontam para a mesma coisa: aplicado de maneira estrita, Montessori pode oferecer vantagens fantásticas para o desenvolvimento da criança. Utilizado de forma flexibilizada, oferece menos benefícios e nós ignoramos, cientificamente, os resultados dessa prática. Há quem chame esta maneira de ver Montessori de purista e argumente que é necessário trazer Montessori aos novos tempos. Argumentamos aqui que não se trata tanto de purismo quanto de radicalismo. É radical - é respeitar as raízes, então - utilizar Montessori de maneira clássica. E é radical - revolucionário, portanto - utilizar Montessori em todo o seu potencial. É atenuar o radicalismo de Montessori, e daí diminuir o potencial da metologia, flexibilizar seus aspectos fundamentais. Montessori também nos disse, em A Educação e a Paz: "Uma educação capaz de salvar a humanidade não é tarefa pequena". Nossa tarefa é imensa, e ela é também humilde: devemos ser capazes de respeitar o que aprendemos, utilizar aquilo que foi desenvolvido pelo gênio de Montessori, e somente com muita observação, muito cuidado e critérios muito exigentes, fazer alterações ou adições ao método. Trazer Montessori para o nosso tempo é atentar para e respeitar aquilo que a ciência de nosso tempo nos demonstra, e ela nos mostra que Montessori estava certa. Referências: Maria Montessori - Pedagogia Científica Maria Montessori - A Educação e a Paz Lillard e Heise - Removing Supplementary Materials from Montessori Classrooms Changed Child Outcomess - Journal of Montessori Research, 2016, Vol. 2. Falamos bastante de Montessori como uma educação para a Paz. Hoje, aqui, eu quero pensar de uma forma levemente diferente. Quero pensar em Montessori como uma Educação em Paz. Há uma pequena diferença. Pensar em uma Educação para a Paz por si só já é um objetivo muito nobre, e é nobilíssimo se levarmos em consideração o período histórico em que a proposta de Montessori se fez: entre e pós Guerras Mundiais. Nesse contexto, pensar em uma educação para a paz é pensar em um futuro possível, em uma geração seguinte que possa viver de uma maneira melhor e mais humana, num mundo diferente e mais digno para todos, que virá pelas mãos daqueles que agora ainda são pequenos, mas que, porque passaram por um processo educacional para a Paz, poderão construir a Paz mesmo depois de já não estarmos mais aqui.
Quem vem estudando o humano [1] [2] [3] vem percebendo, no entanto, que é difícil levar paz ao outro sem ter paz consigo. É difícil, para mim, educar o outro para a paz, se eu mesmo não vivo em paz, se eu mesmo não busco a paz em cada passo e palavra. Educar para a paz é educar-se para a paz. Daí, Educar em Paz. Montessori disse em Mente Absorvente que a revolução que ela propunha não poderia ter nada de violento, porque qualquer grau de violência indicaria o fracasso de todo o seu processo de salvação da humanidade. Se nossa revolução é uma revolução pacífica, então ao longo de todo o processo, nós devemos ter a paz não só como objetivo, mas como modus operandi. Montessori propõe para nós, em 1913 [4], que o conceito de liberdade que ela utiliza é biológico, e que para ela a liberdade é o conjunto de condições necessárias à vida. Assim, uma árvore é livre quando pode ter suas raízes muito firmes em um solo nutritivo e espaçoso, mas uma gaivota é livre quando pode voar distâncias saudáveis e encontrar alimento adequado. A Terra, proporia Montessori, entrega aos seres viventes tudo aquilo de que necessitam para a liberdade biológica, e a satisfação dessas condições necessárias à vida seria também base para a construção da paz – é claro, se pensarmos um pouco, que quando todos tiverem as condições necessárias à sua existência preenchidas, não há mais pelo que guerrear, senão por nossas angústias e ilusórias faltas, e essas, precisamos crer, podem ser prevenidas por um processo educacional pacífico. Se eu proponho que partamos para uma visão da educação para a Paz mais radical, não me afasto de Montessori, mas me acomodo sob sua sombra e sob a memória de suas palavras, e proponho que façamos como ela e alcancemos os conhecimentos mais fundamentais sobre levar paz ao outro para que utilizemos esse conhecimento em nossa prática pedagógica. Para que possamos educar em paz, precisamos desenvolver um mesmo tipo de atitude, em duas direções diferentes: para dentro de nós, e para fora de nós. Ele precisa acontecer para dentro de nós primeiro, e não pode ser ignorado, porque se não trabalharmos conosco mesmos em paz, não podemos trabalhar assim com as crianças. O processo que precisamos desenvolver consiste em uma afirmação e duas perguntas [5]. Essa prática deve ser repetida sempre que houver um problema. O primeiro passo é a afirmação: Oi, eu estou aqui para você. Quando uma criança não nos obedece, tenta nos agredir ou faz qualquer coisa que nos faça duvidar de nós, surgem muitas sensações ruins, misturadas e confusas, entre a garganta e a cintura. Sensações pesadas, apertadas, quentes, frias, escuras, doloridas. E nós damos vazão a isso por meio da agressão contra a criança ou tentamos eliminar isso por meio da agressão contra nós mesmos. O processo aqui é um terceiro. É pegar esse sentimento no colo – como você pegaria um filho que chora – e dizer a ele: Oi, eu estou aqui para você. Sem repúdio, nojo, medo. Ele é só um sentimento, indefeso, e precisa de atenção e carinho. Oi, eu estou aqui para você. Só isso, só duas ou três respirações profundas enquanto você diz para esse sentimento dentro de você que você está aqui, isso deixa o sentimento em segurança, mais tranquilo, mais em paz. Exatamente como acontece com o bebê carregado no colo. Oi, eu estou aqui para você. O segundo passo no processo interior é descobrir o que disparou o sentimento confuso. Para isso, não tem jeito, precisamos segurá-lo no colo e perguntar: O que aconteceu, meu querido? E ele vai responder. Ele vai chorar um pouco, e espernear um pouco. Talvez ele te agrida um pouco, porque está desesperado, e então te segure forte e soluce um pouco. Nesse meio tempo, você respira, e você preta atenção na sua respiração. Inspirando, perceba o ar entrando, e expirando, perceba o ar saindo, enquanto você espera a resposta do seu sentimento confuso, e conforme ele sentir que você está lá mesmo para ele e que você quer saber mesmo o que aconteceu, aos poucos ele te conta, e ele fica mais tranquilo, porque quando contamos coisas nós ficamos mesmo mais tranquilos, e acontece o mesmo com sentimentos confusos. E aí, você não precisa ter medo da resposta: talvez ela te revele aspectos da sua personalidade que você preferia ignorados, mas Montessori nos diz que para corrigirmos defeitos de nossas personalidades, o primeiro passo é conhecer bem cada um deles [7]. Deixe seu sentimento confuso falar, e repita com carinho: O que aconteceu, meu querido? O que aconteceu? Finalmente, o terceiro passo é permitir que ele se acalme nos seus braços e aí, finalmente, perguntar, com seriedade, consideração e cuidado: O que eu posso fazer para ajudar? E você vai descobrir, estarrecido, que a resposta geralmente é simples. Pode ser “Ir lá fora, com uma criança, procurar uma flor para decorar a sala”. Pode ser “Tomar um copo d’água em silêncio, olhando pela janela”. Pode ser até “Apresentar um material importante para a Thaís, enquanto peço para um colega cuidar do ambiente”. As soluções quase sempre são simples, no curto e no longo prazo, e felizmente são muito repetitivas. Você descobrirá, aos poucos, que um método delicioso de estar em paz é se portar sempre como nos portamos na apresentação de um material de Vida Prática: Respire, Sorria e Vá Devagar. E quando estiver difícil, retorne, Respire, Sorria e Vá Devagar. O retorno constante à postura de carinho e cuidado conosco nos ajuda a ter carinho e a cuidar do ambiente, a ter carinho e a cuidar das crianças. Aos poucos, respirar, sorrir e ir devagar tornam-se sua identidade, e as palavras e os gestos ríspidos desaparecem lentamente. No próximo texto, nós vamos retomar esse processo, a a firmação e as duas perguntas, e ver como elas podem ser feitas de dentro para fora, para ajudar a ver melhor a sala, a entender melhor nossas crianças e a depositar afeto e atenção em nossos ambientes preparados. Este texto é dedicado a Paige Geiger, que aniversariou ontem, e a Marion Wallis, diretoras do Centro de Educação Montessori de São Paulo, que nos ensinam a educar em paz e para a paz, em cada gesto e palavra. Sempre obrigado. - Referências: [1] Brené Brown – A Coragem de Ser Imperfeito [2] Matthieu Riccard – A Revolução do Altruísmo [3] S.S. o Dalai Lama – A Arte da Felicidade [4] Maria Montessori – The 1913 Rome Lectures [5] Thich Nhat Hanh – em https://www.youtube.com/watch?v=NJ9UtuWfs3U [6] Maria Montessori – Mente Absorvente (esgotado em editora) [7, base para todo o texto] Maria Montessori – A Criança (esgotado em editora) Nenhum problema social é mais universal do que a opressão da criança. Para não errar nenhuma palavra desta frase, olho para cima, onde a citação de Montessori está pendurada, em minha lousa de estudo. Ela fica lá, para me lembrar todos os dias: hoje, você vai encontrar crianças, e hoje você vai encontrar adultos que ainda não pararam para pensar nas crianças. Liberte-as, permita que se libertem.
Nós, montessorianos, vivemos em uma posição privilegiada e de grande responsabilidade: por um lado, temos um conhecimento raro, compartilhado por poucos, que nos permite entender a vida, a civilização, a história e o ser humano de uma forma especial, que beira ou transborda o encanto e a magia. Por outro lado, está em nossas mãos e em nossas vozes fazer o século da criança. Montessori acreditou que o século da criança seria o XX. Mas não foi. O XX foi o século da Guerra. Está mesmo em nossas mãos cuidar para que este século termine com a libertação das crianças. Felizmente, isso parece provável. Hoje, mais do que em qualquer momento da história, percebemos as diversas formas de opressão: a mulher, o negro, o pobre, o portador de deficiências ou necessidades especiais, todos estão sendo mais e mais notados, melhor e melhor vistos por si e pelos seus outros. As lutas sociais ganham cada vez mais corpo e a compaixão ganha cada vez mais espaço no mundo, como valor pessoal, filosófico e político. Nosso tempo é um tempo de sorte para quem luta pela paz – segundo Montessori, é isso que fazemos. É claro que nosso papel, portanto, é o absurdo. Nosso papel é o extremo e o inaceitável. Montessori disse que todo o seu método começou com uma heresia. Em retrospecto, podemos contar várias: crianças com Necessidades Educacionais Especiais podiam aprender; crianças podiam aprender sozinhas; crianças podiam ser respeitadas; crianças podiam ser deixadas em liberdade; a ajuda que pensamos dar é em verdade obstáculo ao desenvolvimento; o adulto é um tirano. Não podemos, hoje, ter medo das heresias de Montessori. Elas são urgentes como eram em 1907. E hoje, especialmente nas partes do mundo mais ligadas às lutas sociais, essas heresias, com algum esforço, podem encontrar espaço para crescer, florescer e frutificar. Assim, é uma série de heresias que quero propor aqui, listando maneiras por meio das quais oprimimos crianças. Como qualquer lista, ela será incompleta, e como qualquer lista, será mais absoluta, talvez, do que devesse. Assim mesmo, desejo a propor. Em nossa luta para libertar a criança do adulto precisamos pensar e repensar coisas, atitudes. Com a humildade (Montessori disse a humilhação mesmo) de aceitarmos quando estamos errados, e quando aquilo que nos parecia natural, até mesmo necessário, se mostra potencialmente errado, potencialmente desrespeitoso e opressor. Então, à lista. Ela será pequena, mas eu sei que nos comentários ela poderá ficar muito maior, com a contribuição de todos vocês. 1. Nós tocamos crianças sem o convite delas. Isso nos é vetado pelo primeiro princípio para educadores montessorianos, listado pela própria Maria Montessori. Mas nem sempre é um princípio que respeitamos, e nós tocamos crianças na escola, na rua, nas casas de outras pessoas sem que elas nos convidem de nenhuma forma. Isso reforça a crença de que o corpo de um ser humano pertence a quem quiser tocá-lo. Nós sabemos as trágicas consequências desse tipo de crença. 2. Nós proibimos crianças de desempenharem ações perfeitamente razoáveis. O motivo pelo qual fazemos isso geralmente é que estamos cansados ou que tememos que elas façam um estrago quando tentarem fazer o que querem. Nosso medo da incompetência alheia não deveria inibir o trabalho das crianças. Novamente aqui, sabemos que a desconfiança sobre a competência de alguém que é diferente de mim só porque esse alguém é diferente de mim pode ter consequências muito ruins. 3. Nós rimos das contribuições sérias das crianças. Sob o pretexto da fofura, nós gargalhamos frente à argumentação infantil séria. Qualquer adjetivo é cultural (o que não quer dizer que suas consequências sejam todas ruins ou que as consequências da crença não sejam neurológicas): achar crianças fofas, engraçadinhas, divertidas ou incríveis é cultural. Nós podemos achar qualquer coisa. Mas não podemos rir diante de uma criança que, seriamente, busca conversar conosco ou contribuir para uma discussão. 4. Nós falamos com as crianças de formas que jamais falaríamos com adultos. Damos ordens a nosso bel prazer, chamamos as crianças por adjetivos diversos, gritamos, perdemos a calma com rapidez, somos estúpidos, humilhamos e ofendemos. De acordo com os últimos capítulos de Mente Absorvente, as notas escolares entrariam no grupo das humilhações. Nós não falaríamos com adultos assim (eu espero que não) e não podemos falar com crianças assim. Esse item também vai contra o décimo princípio de Montessori. 5. Nós não consideramos crianças como seres humanos normais. Não existem (ainda bem!!!) programas de televisão sobre técnicas opressivas para fazer adultos comerem pratos com cinco ingredientes, sem ver TV, até o final. Existem dicas, conselhos, e eles têm como foco a saúde, simplesmente, não o ser inteiro. Programas de TV sobre alimentação e disciplina infantil diminuem a criança a um animal de estimação e fazem com seres humanos o que Dr. Pet faz com cães. 6. Nós rimos das dores das crianças e as minimizamos. Rir das falhas das crianças é rir das falhas de um ser humano que se esforça e não consegue. É rir de alguém que dá o máximo de si e erra. É rir de alguém que aposta tudo o que tem e perde. Dizer que não foi nada quando uma criança se machucou, se chateou ou foi ofendida é dizer que não foi nada para um ser humano que sofre, que sofreu abusos, opressões, perdas. A compaixão pede de nós que superemos a tentativa de nos livrarmos rapidamente do problema e, aceitando que foi alguma coisa lidemos com ele. 7. Nós fazemos piadas sobre crianças entre adultos e usamos adjetivos ligados à infância como ofensa. Memes, figuras, frases, tweets e posts sobre crianças que tenham como objetivo sua ridicularização são erros graves. É diferente de rir de uma situação, como rimos de situações entre adultos. A distinção é assim: se a piada diminui a criança pelo fato de ela ser criança, está errado e é opressão. Também está errado usar “infantil”, “criancice”, “criança”, “bebezão” e outros termos ligados à infância como termos pejorativos para humilhar adultos. Eu não planejei quantas formas de opressão colocaria na lista. Há muitas mais do que aparecem aí. Eu escrevi quantas couberam em uma página A4 com letra e espaçamento padrão. Quando descubro uma nova forma de opressão contra a criança, fico envergonhado e pensativo. Confuso também seria um termo adequado. É minha esperança que todos fiquemos um pouco assim, e essa pequena lista nos faça (re)pensar. Nós não precisamos concluir. Alguém disse que a revolução não é um evento de um dia só. Mas nós não podemos parar de lutar. Disse Montessori: continuamos porque precisamos, porque é assim que é e é assim que deve ser. Continuemos. |
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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