Ainda este ano, em uma conversa durante uma palestra, alguém disse, sobre Vida Prática: "Puxa! É muito legal! As meninas gostam mais, né? Mas é legal que tem coisas pros meninos também. Mas é muito legal, elas podem aprender as coisas!" - isso ou uma frase semelhante. Antes de demonizar a pessoa que falou a frase citada acima, pensemos: oferecemos atividades de costura para os meninos? Nosso kit de costura é cor-de-rosa? O que isso quer dizer para nós? Nós somos incansáveis nas apresentações de arranjos de flores para ambos os gêneros? Compreendemos melhor um menino que não se concentre do que uma garota? Permitimos mais os movimentos desastrados deles do que delas? O que esta pessoa pronunciou em voz alta é, em verdade, o que muitos professores e pais pensam da primeira vez que são apresentados à Vida Prática, e se não o dizem é porque vivemos em tempos de luta no que diz respeito ao discurso sobre gêneros. O que os tempos pedem, os meninos demonstram e as meninas exigem é uma profunda alteração em nossas ações e pensamentos no que diz respeito ao que ensinamos e ao que esperamos de nossos garotos. Quando eu tinha doze anos, e ainda estudava em Montessori, minha mãe fazia lindos bordados em ponto cruz. Uma amiga também fazia. Eu queria fazer. Em minha casa nada nunca nos foi imposto porque éramos garotos, e eu pude aprender a cuidar da casa, cozinhar, bordar, costurar um pouco, caligrafia artística, escrever poesia, yoga. Nunca ninguém me disse que porque eu era menino devia aprender futebol - ainda bem, eu fiz uma aula de futebol uma vez, e se não me arrependo é porque reconheço a importância do fracasso na vida. Bom, eu fiz um bordado em ponto cruz. Fiz dois, na verdade. Um foi uma toalhinha para essa minha amiga, que bordava, com o nome dela. O outro, mais desafiador, foi um mago vestido de azul, com uma longa barba branca. Eu não continuei, nunca mais fiz mais nada, não quis. Passou. Mas eu me lembro até hoje da conquista, da vitória, da sensação interior de sucesso. Eu guardei o mago e mostrei para as professoras e os professores, os parentes e os colegas: eu conseguia criar - copiar - arte em pano. Eu podia fazer coisas difíceis com as mãos. Em um vídeo, na página Montessori Guide, um garotinho de muito pouca idade faz um arranjo simples com uma flor, e enfeita uma mesa. Ele prepara, enche um pequeno vaso com água, seleciona uma flor, ajeita a flor no vaso, pega uma toalhinha plástica branca e circular, posiciona a toalha em uma estante e o arranjo sobre ela, bem no centro (ele se esforça para acertar o centro) e volta, contente, para a mesa, para fazer o próximo. Circula na internet uma fotografia de três garotos com bonecos nos braços, dando mamadeira para os brinquedos. A legenda diz algo como "Você não deixa seus filhos brincarem de boneca? Você tem medo de que eles se tornem... Bons pais?". Nó temos uma boneca em Montessori, e ela serve para as crianças lhe darem banho, numa pequena banheira. Mas nós também temos louça, costura, pintura, flores, faxina, culinária. Nós temos todo o universo para pequenos Donos de Casa, da Casa das Crianças. É de fundamental importância que saibamos: usar essa casa, tornarem-se donos da casa, é importante para todo mundo. Também para os meninos. Eles não devem ser apresentados à matemática e à linguagem mais rapidamente. Eles não devem ser mais incentivados que elas a subir em árvores e menos a polir antiguidades de prata. Não só porque eles e elas adoram tudo em intensidade semelhante, mas porque eles e elas precisam de tudo em intensidade semelhante. Eles não são, e não precisam ser, "mais agitados que elas". Eles não são, por natureza, e não precisam ser, por cultura, "mais desastrados, mesmo". Não. Eles podem ser exemplos de coordenação motora, senso estético e cuidado com o ambiente. Da mesma maneira que elas podem ser exemplos em escalada, salto, corrida e, claro, aritmética e raciocínio lógico. Funções Executivas, o tema de um texto recente aqui do CEMSP, existem em garotos e garotas. Desenvolvimento psicomotor também. Preocupação social tanto quanto. Senso estético, igual. Reconheçamos, todos nós: eles e elas podem as mesmas coisas, não há diferença de competência. Quando houver, que seja o Pedro, a Fabiana, o Felipe, a Clara, o Rafael, a Mariana, o Cristiano. Que não sejam os meninos e as meninas, que seja cada um. Que não agrupemos as crianças em grupos que excluem competências a priori. Que não os excluamos de nossas observações e não as eximamos de nossa análise. Que eles possam ser tudo o que podem ser, em todas as direções. Às vezes, para ela, é na escalada ou na manipulação da terra que o Equilíbrio Natural da Criança, a Normalização, a espera. Às vezes, para ele, o Equilíbrio está na trama de um ponto cruz, ou em uma pequena mancha de gordura em um prato que precisa ser lavado. A paz dela pode estar em uma experiência de química intrincada. A paz dele pode estar em duas margaridas e um ramo de pequenas folhas verdes arranjadas com beleza na penteadeira da área de Vida Prática. Que nós possamos, com nossos olhos clínios e amorosos, analíticos e devotados, abandonar as lentes de gênero que nos limitam o trabalho. Que nós possamos informar nossas famílias sobre isso, ajudando-os também a superar esses limites, derrubar muralhas que nos impedem, tão intimamente, de enxergarmos o brilho nos olhos de nossos meninos e nossas meninas quando eles fazem coisas que não esperamos. Vamos mais longe assim. Vamos mais longe olhando para cada humano pelo que ele ama. ---- Você vê mais esteriótipos de gênero acidentais na prática de Montessori? Você acha que há assunto para mais de um texto no tema? Comente aqui e vamos conversar sobre isso!
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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