Lembremo-nos dos estragos que resultaram do desejo de Freud de fazer de seu método uma Causa: a criação de uma geração de zumbis, repetidores hipnotizados de ladainhas e de fórmulas esotéricas tão empoladas quanto vazias, que se alimentam da carne dos que chegam mais ou menos entusiasmados para aprender e que serão, por sua vez, transformados em cadáveres insepultos e parcialmente comidos à procura de carne fresca. – LEITE e GOLDENBERG, Psicanálise Marginal in Revista Cult, Maio de 2015, p.30. Montessori foi um sucesso desde o começo. Da Clínica Ortofrênica da Universidade de Roma, Montessori foi capaz de se tornar celebridade em toda a Europa por educar crianças que se pensavam ineducáveis e ajudar essas crianças a terem um desempenho igual ou superior ao das crianças das escolas comuns de toda sua nação. Sua resposta à transformação de sua ciência em um fenômeno midiático do qual ela, e não as crianças ou suas descobertas, era a estrela, gerou nela uma só resposta, enviada por carta ao seu pai: o voto de desaparecer, para sempre, dos jornais. Nunca mais ninguém ouviria falar de Montessori, bem ou mal. Por dez anos, Montessori conseguiu se esconder de fato, e continuar pesquisando, avançando, melhorando. Então, em 1907, ela assistiu extasiada aos seus alunos que, com quatro anos de idade em uma Casa de Crianças mal preparada e mal mobiliada, aprenderam a escrever e saíram pichando paredes, mesas, pisos e até cascas grossas de pão. A imprensa ficou tão extasiada quanto Maria, e fez nascer, do método da pedagogia científica, o método Montessori.
Nossa educadora, por sua vez, fez outro voto: abandonar tudo e seguir a criança. Em ação, isso se traduziria pela saída de Montessori da Universidade de Roma alguns anos depois, e por suas viagens por todo o mundo para divulgar, ensinar e defender o que então se tornava a principal alternativa à educação tradicional no ocidente. Saudosa de seus cada vez mais raros momentos de pesquisa e reflexão, Montessori se torna uma ativista, uma benfeitora da humanidade, e uma defensora ardorosa da criança, cada vez mais enfática, cada vez com melhores insights, cada vez com melhor retórica. Para ela, o método ainda era ciência, para Montessori, o método da pedagogia científica foi ciência até o fim. Uma ciência não-cartesiana, é bem verdade, mas ciência ainda, rigorosa, precisa, perspicaz e, quase em tudo, acertada. Nesse meio tempo, muita gente soube de Montessori. As edições de seus livros se esgotavam tão logo eram lançadas, e os jornais que traziam reportagens sobre ela eram vendidos e precisavam, por vezes, de reimpressões. As cartas fluíam às centenas à sua mesa, em Roma, e às mesas de toda a imprensa, que falava de Montessori como se fala hoje, talvez, de alguém que descobrisse uma revolução na medicina, mais do que na educação. Acontece, porém, que Montessori esperava muito do gênero humano. Ela realmente acreditava que, com um pouco de bom senso e muita boa vontade, mais um treino básico em observação e o aprendizado do manuseio dos materiais, nós poderíamos continuar seu trabalho. A bem da verdade, conseguimos, um pouco, aos tropeços, qualquer coisa parecida – às vezes mais, às vezes menos – com o que Montessori dizia que acontecia em suas escolas. Mas há alguns padrões de aplicação de Montessori que se repetem e nos podem iluminar os caminhos, e vou tentar recuperar dois ou três deles bastante brevemente. Primeiro, é comum que em salas onde Montessori funciona, duas coisas aconteçam: ou há, na escola, um membro que conhece muito, esforça-se muito e estuda muito, conhece muito e pratica, ou praticou muito, e tem acesso a todos os outros membros para ajudar; ou há um professor que é como esse membro da equipe, mas não tem acesso a todos, então consegue ajudar muitíssimo as suas crianças, mas é limitado pela ineficiência da escola ou dos colegas. Em escolas onde Montessori não funciona, entretanto, temos também padrões, e esses podem ser mais seguros e nos elucidar melhor. Há duas percepções de Montessori bastante onipresentes, que levam ao mau funcionamento de qualquer coisa que se parece com o método, e é aplicada em salas de aula as mais diversas. A percepção de Montessori como milagre e a percepção de Montessori como espetáculo. Enxergar Montessori como milagre é pernicioso, porque intimamente, faz-nos acreditar que basta proceder de maneiras determinadas para que o resultado apareça. Acreditamos, dentro de nós, que dados os materiais corretos no lugar correto com a apresentação correta na idade correta, tudo de correto acontecerá então. Esquecemo-nos de que existe observação. Esquecemo-nos de que é necessário olhar a criança. E marcamos quantas vezes comeu, quantas vezes foi ao banheiro e com quais materiais trabalhou – em papel, em celulares, em tablets. Mas não olhamos a criança. Não sabemos se ela fez uma careta enquanto trabalhava. Não sabemos se ela passou o dia sem trabalhar olhando todos os colegas que trabalhavam com matemática. Ou se passou o mesmo dia sem trabalhar, na área externa da sala, olhando todas as atividades com água. Nós só sabemos que ela não trabalhou com nada. Ver Montessori como milagre é perigoso porque nos pegamos esperando o milagre funcionar. E quanto não funciona, crianças de pouca fé, é porque o método não é feito para todas as crianças, não é feito para essas. Imaginamos estar aplicando Montessori. Quando, de fato, não é possível aplicar Montessori. Só é possível ser Montessori, levar a cabo, talvez, um método de observação da criança, usar os meios de desenvolvimento criados ou melhorados por Montessori, olhar a criança e buscar ajuda-la em seu caminho para uma vida equilibrada. Infelizmente, na obra de Maria Montessori, é fácil encontrar passagens em que Montessori dá a entender seu método como milagre. Isso se deve, não tenho dúvidas, primeiro ao maravilhamento de Montessori diante das crianças, e segundo, à humildade de Montessori exercitada ao grau da isenção total em relação aos resultados maravilhosos de sua ciência nova. Fato é, entretanto, que quando saltamos da ideia do milagre para a aplicação real, esquecendo a observação, o esforço e o raciocínio, não vamos longe e, na maior parte das vezes, culpamos as crianças e o mundo de hoje – este último às vezes merecidamente, é verdade, mas devemos lembrar que Montessori pode funcionar mesmo assim. A segunda percepção de Montessori que dificulta uma utilização melhor dos princípios desenvolvidos por Maria é a ideia de que Montessori é um espetáculo. Essa percepção nos faz querer ver o incrível, o inacreditável e o imprevisto o tempo todo. Online, se vê com facilidade quem deseje a explosão da escrita em suas escolas, ainda que Montessori tenha dito que a explosão da escrita não deve acontecer em escolas que se preparam para o aprendizado autônomo da escrita pela criança. As fotografias, os depoimentos e os vídeos, todos funcionam pela ideia do espetáculo, e nós desejamos que nossas salas sejam espetaculares, no mau sentido do termo, como o são os vídeos e as histórias que ouvimos e lemos na internet. Haverá, é certo, espetáculos. Haverá, também, de certo, momentos não-espetaculares. Momentos comuns, momentos em que se progride normalmente. Momentos em que as dificuldades existem e exigem que se lide com elas, momentos em que uma criança não terá ensaiado antes de vir para a escola, e não poderá nos impressionar como gostaríamos que fizesse. Esquecer de que Montessori é ciência, e a ciência é quieta, concentrada, lenta, paulatina, e exige grande esforço de raciocínio é fácil quando encontramos uma fórmula que funciona. Numa rápida digressão, não é por menos que o mundo se manteve acreditando que a Terra era chata, que Newton estava correto ou que a evolução das espécies não acontece por mutação. Uma fórmula que funciona salva tempo, salva esforço, nos permite pensar em outras coisas. O resultado maior da adoção de Montessori como fórmula que funciona é que paramos de pensar no método e passamos a pensar em materiais. Hoje, nossas salas têm muito mais materiais do que havia nas salas de Montessori, e acreditamos que aplicar exatamente o mesmo método com muito mais materiais em um mundo absolutamente diverso deveria funcionar, provocar o milagre e nos fascinar com o espetáculo. O fato de que Montessori, ainda assim, funcione em grande parte dos casos, só nos convence mais de que estamos corretos – e talvez estejamos. Abandonar, ainda assim, as noções de milagre e espetáculo é essencial para que possamos pensar na ciência. É só assim que poderemos fazer o método Montessori existir, espalhar-se e frutificar em nosso novo tempo. Precisamos dar um passo para trás, parar de agir, e pensar. Há hoje impedimentos a Montessori, dificuldades a Montessori, que não havia há cem anos e, se durante sua vida, Montessori ela mesma transformou procedimentos de sala de aula, mudou sua concepção acerca de temas como o silêncio da criança e alterou pontos importantes de seu trabalho, além de expandi-lo para as crianças para além de seis anos e para aquém de três, então é nosso papel continuar seu trabalho. Se não quisermos, pouco a pouco, tornar-nos uma geração de zumbis, repetidores hipnotizados de ladainhas e de fórmulas esotéricas tão empoladas quanto vazias, precisaremos reaver o método – como diz Edimara de Lima, pensar como Montessori pensava – precisaremos reaver o raciocínio, para pensarmos nossas salas de aula, nossas reflexões, nossas disseminações, nossas formações. Retomar a reflexão se faz mais essencial conforme o mundo se transforma. Nosso trabalho, como o de Montessori a partir de 1913, mais ou menos, é transformar o mundo. Mas é também, e hoje, parece, ainda mais, aquele que Montessori exerceu até 1913: compreendê-lo.
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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