“Leis e tratados não são suficientes; o que é preciso é um mundo novo, cheio de milagres” – Maria Montessori Estamos todos, em diferentes graus, acompanhando a tragédia que se desenrola na Síria, e nesse momento especialmente em Aleppo, onde milhares de crianças já se encontram desabrigadas, sozinhas, no meio de um conflito do qual não podem sair ou ser retiradas. Aleppo já foi a maior cidade da Síria, e era o centro financeiro e industrial do país. Hoje, é uma cidade cheia de morte, ruína e medo. Em toda a Síria, quase meio milhão de pessoas já morreram e cerca de 5 milhões deixaram o país. A ONU disse que são necessários US$ 3,2 bilhões para prover ajuda humanitária a 13,5 milhões de pessoas - incluindo seis milhões de crianças - no país. Além disso, 70% da população não tem acesso a água potável, uma em cada três pessoas não consegue suprir as necessidades alimentares básicas, mais de 2 milhões de crianças não vão à escola e uma em cada cinco indivíduos vive na pobreza. (BBC) 3,2 bilhões de dólares. Parece bastante dinheiro. Mas é menos do que o gasto militar de um só dia no mundo. Um dia de trégua poderia prover ajudar 13,5 milhões de sírios. Vale dizer que com oito dias, segundo a Nobel da Paz Malala Yousafzai, poderíamos prover escola gratuita para toda a população infantil do planeta. Racionalmente, seria uma ideia genial passar uma semana em trégua no mundo todo, e resolver um dos maiores problemas da civilização. Por que insistimos na guerra? Montessori tem uma resposta. Para ela, as diferentes guerras entre países, por dinheiro, ideologia, poder e território, tinham uma raiz em comum: a guerra entre o adulto e a criança. Da mesma maneira que uma alimentação ruim ou uma má higiene são origem de muitas doenças, a guerra entre adulto e a criança é a origem de inúmeros conflitos. Ela diz: O que nos impressionou em particular foi a existência de um conflito verdadeiro, de uma luta sem trégua, que espera o ser humano desde o seu nascimento e o acompanha por todo o seu crescimento – é o conflito entre o adulto e a criança [...] O adulto e a criança – ambos inconscientes de suas características – estão envolvidos em uma guerra de eras [...] O adulto triunfa sobre a criança de forma que, quando a criança cresce, traz gravadas para sempre as marcas daquela famosa paz que sucede a guerra, feita, por um lado, de destruição, e por outro de uma adaptação dolorosa. (Montessori, Peace and Education, 1971) É claro que nenhum adulto gostaria de entrar em guerra com as crianças e que, de novo, racionalmente a paz é muito melhor. O que origina esse conflito-raiz é a inconsciência de nossos potenciais e dos de nossos alunos e filhos. Nós somos diferentes em muitos aspectos, e um dos principais deles é o trabalho que temos a desenvolver. O adulto trabalha para produzir o mundo, e por isso tem objetivos externos a si mesmo, controla seu tempo por meios “objetivos”, como o relógio e o calendário, e precisa atingir níveis de perfeição ou de sucesso estabelecidos por consenso ou imposição social. Pense, por exemplo, em um trabalhador industrial clássico, que deve fazer algumas centenas de parafusos por dia, e um número menor e regular por hora, de forma que todos eles tenham exatamente o mesmo diâmetro e funcionem da mesma forma. Ou considere um chef de cozinha, que por mais genial e criativo que possa ser, deve produzir um cardápio que agrade a seus clientes e críticos, numa velocidade que não os deixe esperando por muito tempo, com uma qualidade regular o suficiente para inspirar confiança. Nos dois casos, há também o ganho financeiro, exterior ao indivíduo, e que importa imensamente. A criança é o avesso disso tudo. Ela trabalha para produzir a si mesma, e seu único objetivo é satisfazer às necessidades interiores de sua mente e corpo, por isso o tempo de suas ações é controlado pelo ânimo, frustração, vontade, satisfação e cansaço. Os níveis de perfeição em geral cada vez mais altos de suas ações têm menos a ver com a necessidade de satisfazer o outro do que com o desejo de melhorar a si mesmo. É assim que uma criança pode passar vinte ou quarenta minutos concentrada em algo aparentemente inócuo, como fazer um buraco em areia, mesmo enquanto ele é novamente preenchido pela areia que não cessa de cair, enchendo o buraco de novo. É assim, também, que um aluno montessoriano pode se dedicar, repetidamente, a um mesmo esforço, como pintar o interior de uma forma geométrica ou encaixar corretamente os sólidos do Cubo do Trinômio. O adulto tem a mesma dificuldade de compreender a criança que a criança tem de se adequar ao adulto. Mas a criança precisa se manter no seu modo de produção de si mesma, enquanto que ao adulto cabe compreender as necessidades e potenciais dela, e protegê-los inclusive de si mesmo. A inconsciência dessa diferença profunda entre adulto e criança é uma – não a única – das causas importantes do conflito que assola todo o mundo e que gera todas as guerras da Terra. Proteger a realização dos potenciais da criança é proteger a capacidade de redenção de toda a civilização. Uma das formas mais belas e importantes de se fazer isso é ajudar a criança a amar o mundo, entrar em contato com ele e trabalhar, de forma concentrada e profunda, para a construção de si mesma. A criança, segundo Montessori, é a construtora da humanidade. Ela sempre é a construtora da humanidade. A humanidade que ela constrói, entretanto, varia. Em condições adversas, constrói mal. O resultado da formação interior da criança, quando submetida a toda sorte de humilhações, privações e opressões é tortuoso, incerto, incapaz de conhecer a si mesmo. Quando, por outro lado, as condições de desenvolvimento são adequadas, a criança é capaz de milagres por si e pelo mundo. Outro ponto fundamental da construção da paz na infância é o respeito à importância da mente absorvente. A mente da criança de zero a seis anos é muito mais do que uma esponja. Ela não é só capaz de sugar tudo aquilo que acontece à sua volta, aprender rapidamente e se desenvolver de forma rápida e eficiente. Não. Ela é capaz de transformação. E transforma-se conforme a natureza do ambiente que encontra. Os estímulos que a mente recebe do mundo não entram nela, eles a transformam e passam a fazer parte da personalidade da criança. Daí, a importância total de uma escolha criteriosa daquilo que a mente de nossas crianças consumirá. Quando uma criança presencia brigas constantes – entre pai e mão, entre professor e aluno, entre aluno e aluno... – ela não aprende a brigar. Isso é pouco, e qualquer um faz. Ela se transforma em uma mente ansiosa, estressada e potencialmente violenta. Os resultados da presença constante do estresse na vida de uma criança são devastadores não porque ela aprenda a briga, aprenda a correria, aprenda a impessoalidade ou a estupidez. Mas porque ela se transforma nesse estresse, nessa ansiedade e nessa violência, e a perpetra contra si mesma e contra o mundo exterior. Só se dá o que se é. Se enxergarmos a importância de um novo mundo, precisamos de “uma educação capaz de salvar a humanidade” (Montessori definia assim sua pedagogia em A Educação e a Paz, ed. Papirus). Não nos basta uma educação veloz, eficiente, universal. Nós precisamos universalizar a transformação da humanidade, e isso significa, por um lado, proteger e respeitar o trabalho da criança, e por outro, proteger e respeitar a formação de sua personalidade. Há, é claro, outros aspectos importantes para uma relação pacífica entre adultos e crianças. Aqui, enxergamos só dois deles. Que por meio do profundo respeito, amor e reverência à infância, todos feitos de conhecimento, empenho e ação verdadeira, nós possamos não só prevenir Aleppo, mas transformar a própria forma como a vida e o mundo serão vistos pelos adultos de depois de amanhã. Que eles sejam capazes de ver o mundo anunciado por Montessori: novo, e cheio de milagres.
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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