Montessori desenvolveu o método da Pedagogia Científica há mais de um século. Terminou de desenvolvê-lo há mais de meio. Ela escreveu obras importantes no fim da vida, é verdade. Mas mesmo assim as suas publicações mais relevantes já passaram dos sessenta anos. Ela trabalhava com materiais de madeira, tinha uma forma de pensar que flertava com o positivismo do século XIX, e desenvolveu boa parte de seu trabalho durante as maiores guerras que o mundo já viu. Personagens tão históricas quanto Freud e Gandhi trocaram palavras e ideias com ela, e ela teve influência sobre nomes importantes da pedagogia como Vigotsky e Piaget.
Mas depois de Vigotsky e Piaget, depois de Paulo Freire, José Pacheco, Emilia Ferreiro e Reggio, depois de Freud, depois de Klein, depois de Spielrein, Neil, depois de tanta gente. Depois da educação digital, dos tablets, das lousas interativas, de Khan Academy e de aplicativos educacionais de toda sorte, depois do Skype e do Google Earth. Por que Montessori, ainda? A pergunta é válida. Ouso um pouco e cogito que Montessori, com sua humildade sem fim, se faria a mesma pergunta. Por que nós, do método, do movimento, quase de um estilo de vida Montessori, estamos em Montessori, ainda? Por que é que Montessori, ainda, tem o que nos dizer? Por que é que ela nos fala cada vez mais? A resposta que segue, é claro, não poderia ser definitiva. Ela é pessoal, é fruto de uma experiência de vida maravilhosa, e é fruto de ciência também. É fruto de bate-papo com famílias e profissionais e é fruto de leitura comparativa de neurociência, religião e um pouquinho de filosofia pós-moderna. Mas mais que tudo isso, é uma resposta emocional. Tendo sido aluno de uma escola montessoriana por quatorze anos, e tendo um irmão que foi aluno em Montessori por quinze, sem provas, sem lição de casa, sem aula – estudando, trabalhando, pensando e discutindo todos os dias – algumas coisas são claras para mim. Não há formação regular que nos faça mais concentrados e sistêmicos em nosso pensamento. Concentrados no sentido cerebral e neurológico do termo. As funções executivas em nosso córtex pré-frontal se desenvolvem muito, muito bem em Montessori, e a capacidade de concentração de uma criança que vive com Vida Prática é quantitativa e qualitativamente diferente da capacidade de concentração de uma criança que não tenha a mesma oportunidade. Sistêmicos no sentido que se depreende do filme Ponto de Mutação (que você encontra legendado no YouTube, e vale a pena ver). No sentido de perceber que não dá para fazer uma coisa certa, melhorar um aspecto do mundo, e esperar que o resto melhore sozinho. É necessário prestar atenção em tudo, o tempo todo. Ligar todas as coisas com todas as outras coisas, sem descanso. E é necessário não esquecer que uma das ligações deve ser de nós mesmos com os outros, e com o Todo. Isso é o resultado de um outro aspecto de Montessori, que foi chamado por ela de Papel Cósmico, é uma das decorrências da Educação Cósmica, a noção de que tudo no universo tem seu papel, inclusive o Humano. Inclusive você, e eu. Há alguns anos foi publicada uma gema bibliográfica preciosa. Angeline Lillard escreveu Montessori: The Science Behind the Genius. Infelizmente ainda é um livro sem tradução para o português. Na obra, Lillard demonstra com um imenso, longo e acadêmico elenco de estudos científicos diversos, a eficácia de oito princípios do método Montessori, selecionados por ela: (1) Movimento e cognição são profundamente ligados; (2) o aprendizado melhora quando o aluno se sente no controle; (3) as pessoas aprendem melhor quando se interessam pelo que aprendem; (4) dar prêmios aos alunos interfere no aprendizado; (5) colaboração com colegas contribui para o aprendizado; (6) o aprendizado é mais efetivo quando se situa em contextos significativos; (7) os professores devem encontrar um equilíbrio entre serem autoritários e serem permissivos demais; (8) as crianças aprendem melhor em ambientes organizados. Isso, somado aos estudos de Steve Hughes e Adele Diamond, ambos demonstrando o profundo impacto de uma educação montessoriana sobre o desenvolvimento das Funções Executivas, basta para comprovar a eficácia de Montessori para o desenvolvimento humano do ponto de vista científico. Mas a ciência é só um aspecto por meio do qual se pode compreender por que Montessori, ainda. Conversando com profissionais da AMAES – a Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo, e assistindo a uma palestra ministrada por duas das excelentes profissionais da instituição, eu pude me emocionar repetidamente com os resultados do tratamento de crianças autistas com Montessori. E aqui eu não falo do material montessoriano, que também é usado. Falo da forma de agir, da ausência de prêmios e de castigos de qualquer sorte, do ambiente preparado para cada criança para que ela possa ser livre ali, da abstenção de interferência na concentração de uma criança que nos quarenta minutos do atendimento busca sucesso em um trabalho. Eu falo de resultados na coordenação motora (grossa e fina) de crianças e adolescentes, falo de resultados no controle do humor e das reações, do contato visual ou verbal com outras pessoas. Falo da alegria de se perceber gente e de ser percebido gente. Gente. Mesmo. Com respeito. Com reverência. Com precisão profissional. Ouvindo palestras sobre dislexia ministradas por uma das maiores pesquisadoras do assunto no Brasil, precisei convidá-la para conhecer alguns materiais montessorianos, que depois ela disse serem usados no trabalho com crianças com dislexia o tempo todo, com resultados excelentes. Eu sabia dos resultados. Nós já havíamos conseguido esses resultados em escolas. Ela também os conseguia no laboratório e no consultório. Mas não sabia que eram materiais montessorianos. Sabia que eram portas quase sem erro para o sucesso com essas crianças. Quando escuto falar na disciplina positiva, escuto falar em Montessori. Quando escuto falar em atenção a cada criança, escuto falar na observação de Montessori. Quando escuto falar no respeito pelas diferenças de cada aluno, de novo escuto falar em Montessori, que nos mandava lançar um raio de luz sobre a vida de cada criança, com a apresentação do trabalho certo na hora certa, e seguir em frente. Quando escuto falar que a criança é a principal peça na construção de um futuro melhor, escuto Montessori chamar os pequenos pelo nobre título de Construtores da Humanidade. E quando escuto falarem de educação financeira para adolescentes, escuto Montessori dizer que os adolescentes são Os Filhos da Terra e que devem conquistar independência social, por meio também de uma educação financeira muito mais complexa e completa do que aquela que se faz hoje, em geral. Quando vejo os olhos de uma criança brilharem ao amassar uma folha seca, vejo nesses olhos o reflexo dos olhos clínicos de Montessori, observando a reação de cada criança a cada estímulo do ambiente. Quando vejo uma criança tranquila em uma sala com poucos e bons objetos, leio no ar suas linhas sobre não confundir a criança com coisas demais. Quando sinto-me tentado a interferir no trabalho ou na interação de uma criança com o mundo, sinto minhas mãos bem seguras às minhas costas, pelos conselhos de uma diretora querida que dizia a nós: “mãos nas costas”, quando víamos um ser vivo viver em paz – um coelho, um pato, um peixe. As lágrimas que me correm ao falar das mãos, e ao enxergar a arte que as mãos podem fazer, refletem as linhas de Montessori sobre as mãos serem os instrumentos da inteligência humana. Os suspiros que me saem quando escuto alguém falar bem baixinho e respeitosamente com uma criança são suspiros de alívio em um mundo cheio de violência contra os seres mais nobres da humanidade. Um mundo no qual os Acusados de Montessori passeiam inconscientes de seus erros para com a infância. Lillard escreveu sobre Montessori e Consciência, e disse que as práticas de Consciência diversas espelham as práticas de Montessori. Adele Diamond chamou os exercícios de movimento de Meditação Caminhando. O Jogo do Silêncio tem aberto, para adultos, novas fronteiras no conhecimento de si mesmos. E Montessori está presente onde queria estar: na Natureza Humana. Na compreensão do Humano. Montessori ainda importa hoje. E importa mais do que antes. Importa mais do que nunca. E menos do que importará daqui uns cinquenta anos. Um sapiente pesquisador da Universidade de Virgínia disse uma vez que “Montessori está muito à frente da ciência cognitiva. Mas devagar, estamos chegando lá”. Nós vamos chegar, e ela vai ser ainda mais pertinente do que é hoje. Montessori, ainda, porque é ela quem nos ensina a olhar a criança pelo brilho dos olhos. A avaliar o progresso pelo movimento dos dedos, em paralelo à careta ou ao sorriso do rosto. A descobrir o aprendizado pelo silêncio e pela manifestação espontânea. É ela que nos ensina a sentar e observar a liberdade. A confiar. Na criança. E desconfiar. De nossos preconceitos sobre a criança. É ela que nos ensina a utilizar as ferramentas cada vez mais modernas para ensinar crianças a … Não. É ela que nos ensina a ajudar a vida. Há mais de cem anos, Montessori apostou que o século XX seria o século da criança. Não foi. Ou talvez tenha sido. Foi o século da Descoberta da Criança, com certeza. Mas o castelo que Montessori propõe em Mente Absorvente, a revolução a que ela nos chama, ainda está por fazer e construir. As pedras continuam aí, cada vez melhor lapidadas, cada vez mais firmes e confiáveis. Haverá o dia em que a revolução terá sido feita. Em que os olhos de todas as crianças poderão brilhar. Por enquanto, Montessori, ainda. - Este texto é muito pessoal. De certo, você tem experiências tão ou mais profundas e importantes do que as relatadas aqui. Será enriquecedor para todos se você dispuser de alguns minutos para compartilhar suas experiências conosco. Montessori ainda é importante para todos nós pelos mais diversos motivos. Por favor, conte os seus!
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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