Faz um par de meses. Era sábado, quase oito da manhã, frio de outono, e eu estava ansioso. Por três horas, receberíamos crianças em uma sala quase perfeita. Quase todos os materiais estavam bem dispostos, muitas plantas, mesas e cadeiras aqui e ali, espaço suficiente para as quinze crianças que viriam. Só havia dois problemas: eu não conhecia nenhuma delas, e todas elas estavam acostumadas a uma aplicação de Montessori que cedia em alguns aspectos nos quais, naquele dia, não cederíamos. Em nossa sala não haveria papel, intervalo, hora do lanche, roda... E eu não sabia nada sobre quem vinha lá. Somente que algumas das crianças representavam desafios para a equipe docente. Quais, restava-me (não) descobrir. Eu não preciso contar detalhes de como foi. Quase todos vocês que acompanham este blog sabem como é um primeiro dia. Só quero escrever sobre duas crianças. Detalhes serão mudados para preservar identidades. As histórias vocês também quase conhecem. Não são incomuns, e serão só uma ilustração.
O dia começou e ele chegou, ressabiado e com olhos grandes, os cabelinhos balançando enquanto abraçava o pai, meio incerto. Só entrou depois que me apresentei e pedi que fosse pegar a etiqueta com o seu nome. Quando perguntei com que queria trabalhar, escolheu uma atividade de vida prática e por uns dez minutos se entregou a ela. Não é a concentração do século, mas é um começo de dia tranquilo, sem dúvidas. E tranquilo foi o resto do dia. Umas três vezes o vi vagando sem rumo pela sala, em uma consegui oferecer trabalho, na outra ele se arranjou sozinho com um colega, e na terceira eu não sei. De outra vez estava, com um colega, desmantelando a área de leitura e eu interrompi, por tempo de menos e com confiança demais, o que fez com que eles mudassem de atitude, mas logo voltassem ao que estavam fazendo, e a excelente assistente da sala foi quem resolveu a situação no final. De resto, pintou, desenhou (duas concessões que decidimos fazer), trabalhou com Vida Prática e materiais sensoriais, esqueceu e não esqueceu tapetes atrás de si, e terminou o dia em paz, brincando na área aberta da escola. Em paralelo, ela também chegou. Olhos ainda maiores, a boca fazendo um bico que não passou quase a manhã toda (só num momento breve, quando acho que quase sorriu, depois de ficar muito tempo com uma jarra e três copos com água). Pensando em retrospecto, era quase um medo naquele rostinho redondo. Ela entrou (e eu sabia uma coisa só sobre ela: corria e pegava trabalhos dos outros. Não me preparei para nenhuma das duas coisas, de propósito) e também pegou sua etiqueta – depois de dois ou três lembretes. Sob sugestão, escolheu um trabalho de Vida Prática, ficou nele por quinze, vinte, perdi-a-conta de quantos minutos, e então um copinho bem pequeno caiu e quebrou. Não se mexeu muito. Continuou a atividade como se o copo estivesse lá ainda, molhando a mesa. Dei-lhe um copo descartável, recolhi o vidro, dei-lhe um pano, ficou mais dez ou doze minutos. Emendou com outra atividade de Vida Prática. Precisou de uma brevíssima interrupção para não fazer pilhas com os copos sobre a jarra, continuou firme por minutos e minutos a fio. Relaxou. Conseguiu interagir com os colegas. Trabalhou-brinco-atrapalhou um pouco, foi interrompida, voltou a quase estragar um material, foi interrompida... e o material foi tirado da sala depois da terceira interrupção. Nenhuma revolta. Nenhuma angústia. Procurou mais que fazer, e fez. E até o finalzinho do dia fez. E aí, nos últimos quarenta minutos, ficar sem ar livre estava demais para ela, e ela já brincava de apertar “botões de telefone” pela sala, fazendo sons com os lábios, de novo em bico. No parque descansou, na cama elástica, enquanto outras crianças pulavam e ela só sentia seu corpo. Foi para casa em paz. Depois do fim do dia, todas as crianças devolvidas às suas famílias, conversei com os mais de quinze professores que assistiram a tudo isso sentados em volta da sala. A professora da garota disse que ela trabalha focada mesmo, quando escolhe um material. Mas que nunca a tinha visto passar um dia assim tranquila. Nunca a tinha visto não interromper um colega, não brigar por atenção ou objetos. Atender tão prontamente a orientações – o que eu confesso, não me pareceu tanta prontidão assim. Em resumo, ela nunca estivera tão bem na sala. De resto, essa garota conquistara a quase-desistência de seus professores. Corria pela escola dia após dia, brigava, resistia a quase tudo, recusava-se a seguir qualquer sugestão. Mas eu fui muito mais surpreendido pela história do garotinho. Ele, que foi tranquilo quase a manhã toda, que seguiu quase todas as orientações como se a vontade fosse sua, e não minha, que trabalhou com sossego e descansou pintando e desenhando em paz... Ele batia diariamente em seus colegas, mordia sistematicamente, e era alvo de atenção constante e desafios constantes na escola. O garoto não bateu, não quis bater, não chegou perto de bater uma só vez. Ele era paz e desamparo. Com mais alguns dias, encontraria em Montessori o oásis que toda criança merece ter na vida. E a garota ... bom, ela encontrou no primeiro dia mesmo. Sua resposta, ao não sair da sala correndo nenhuma vez, por uma porta de acesso constantemente livre a todas as crianças, e sua resposta ao sair e retornar à sala, comunicaram o suficiente. E das duas horas e meia em que permaneceu em sala, por duas horas permaneceu em tranquilidade quase total, precisando da mesma presença adulta que muitas crianças precisam no início, e não mais. Que será que será? O que Montessori tem de tanto que em minutos, que ao entrar na sala, a criança descobre a paz? Que é que uma sala complemente montessoriana, com adultos e materiais, tem de tão óbvio ao espírito que uma criança em desespero e agressão descobre que ali a paz é possível e desejável? Que é que essa sala tem que sustenta, por três horas e muito trabalho, um outro garoto de quem não falei, e que não fica em paz por trinta minutos normalmente? Eu não sei por onde começar, mas entendo quem diz que há qualquer coisa de milagre. Não há. Mas parece mesmo. E essas três horas foram revolucionárias. Não porque eu não conhecesse Montessori ou as transformações que Montessori faz. Mas porque dessa vez eu não sabia quem mais precisava delas, e propositadamente não quis saber. O que fizemos, pelas três horas daquele sábado de outono, foi só Montessori, sem tirar ou por – pondo, na verdade, as falhas humanas que nos cabem – e assistir ao, direi, milagre que se anunciava a cada novo minuto. Para terminar, quero fazer um pedido a você, ao coração do teu peito que anseia por um mundo melhor: não tire nada, não ponha nada. Não crie nada. Não mude quase nada até ter muita certeza de sua mudança. Repita. Repita o que há mais de um século estamos repetindo, e uma a uma, a mente, a paz e, por que é que não digo?, a alma de cada criança encontrará o oásis de onde beber a vida. ___ Nota: Eu sei que não é assim todos os dias, com todas as crianças e todos os professores. A ideia desse texto não é fazer você se sentir muito mal porque hoje seu dia não foi assim. Eu já tive dias de sair da sala – de ir até a janela porque não podia sair da sala – e chorar. Atravessar esses dias foi e é essencial para minha transformação. O pedido continua: vamos repetir, dia a dia, o que se faz a mais de um século. E é assim, uma a uma, que ajudaremos nossas crianças a encontrarem a vida. Clique aqui para editar.
0 Comentários
|
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
Categorias |