Dando continuidade à série sobre Grandes Temas em Montessori, esta semana temos o texto de Alexandra Rodrigues Pinto e Olga Molina¹ sobre o Educador Preparado. Um dos papéis fundamentais do professor no contexto da pedagogia Montessori é despertar na criança o fenômeno que ela denomina uma ‘disciplina interior’ ou normalização. Esta disciplina deverá emergir na criança a partir de seu interesse verdadeiro, espontâneo pelo mundo que a cerca. Para Montessori, a natureza profunda da criança já é guia para essa disciplina a serviço do conhecimento do mundo. Porém, em muitos casos, quando essa natureza não é cultivada - e muitas vezes tendo sido até oprimida - encontra-se adormecida e deverá ser novamente despertada.[1] “A disciplina nascerá quando a criança concentrar sua atenção no objeto que a atrai e permite não só um útil exercício, mas a verificação do erro. Graças a estes exercícios, cria-se uma admirável coordenação da individualidade infantil, pela qual a criança se torna calma, radiosamente feliz, ocupada, esquecida de si, por consequência, indiferente aos prêmios ou recompensas materiais. Estas crianças conquistadoras de si mesmas e do mundo que as circunda são verdadeiros super-homens que a nós revelam a divina alma que há no homem.” [2] São os materiais então que terão o função de acordar a criança para o seu interesse verdadeiro. Nesse contexto, o professor é o mediador entre os materiais e a criança; é ele quem apresenta os materiais, ao mesmo tempo em que observa atentamente como a criança se relaciona com cada um deles, pois a normalização consiste justamente em conduzir a criança a encontrar trabalhos que façam sentido para ela. O professor trabalha, portanto, para fazer despontar na criança uma “disciplina espontânea”, ou seja, uma “disciplina na liberdade”. Quando isso acontece, as características ditas negativas da criança desaparecem à medida em que o trabalho traz à tona um aspecto psíquico novo – antes oculto (ou inconsciente) – que para Maria Montessori é a verdadeira aspiração da criança: a constância no trabalho.[3] Para conduzir as crianças à normalização, o professor terá que:
O professor é portanto, o grande zelador do edifício Montessori, responsabilizando-se pela promoção e cuidado de um ambiente educativo em seu mais amplo sentido. Além dos cuidados constantes com o ambiente físico, incluindo a sala de aula e os materiais específicos de cada área de atividade, o educador é também o criador e o mantenedor da atmosfera da normalização, indispensável à aprendizagem e ao desenvolvimento das crianças em direção à sua autonomia. [1] “Mas sabedoria e disciplina estão a espera de serem despertadas na criança.” (MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 219). [2] MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 218. [3] “… verifiquei que tais características desaparecem mal as crianças se interessam por um trabalho que as atraia…” (MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 169). [4] Autoconhecimento como desenvolvimento pessoal: a tarefa de ser guia, sem no entanto, arrogar ensinar, exige autoconhecimento. Autoconhecimento significa tornar-se mais e mais consciente de si mesmo, de suas reações, de suas crenças, de seus pensamentos e sentimentos para observar e perceber como este “si mesmo” opera no papel de educador. Somente um adulto engajado em conhecer-se pode se desenvolver como educador e com isso ser ponte para o desenvolvimento da criança. Assim como na alfabetização, todo o patrimônio linguístico do educador, seu nível de vocabulário, de pensamento, expressão gestual, verbal, são fatores a serem constantemente revistos e desenvolvidos, o desenvolvimento global da criança também depende do desenvolvimento pessoal do educador, uma vez que só se transmite aquilo que se possui internalizado e integrado. Um educador não preparado pode tanto impedir, como não conduzir, uma criança para o desenvolvimento de seus desígnios, causando nela as fugas ou desvios (posse, medo, dependência, insegurança), comportamentos certamente opostos e impeditivos ao sentido do próprio desenvolvimento humano, qual seja, o atingimento da maturidade e a independência individuais, estas por sua vez, promotoras de um convívio humano harmônico e solidário. A preparação do adulto envolve portanto, a assunção de um desenvolver-se constante, incessante, de um olhar para cada novo mistério que a vida propõe, mistérios estes, que no caso de um educador, são trazidos no mais das vezes, pelas próprias crianças e sua incessante necessidade de desenvolvimento. (MONTESSORI, A criança, pp. 140/165 e MONTESSORI, Educação para o desenvolvimento humano, pp. 84/94). ¹ Autoras:
Alexandra Rodrigues Pinto, brasileira, residente em São Paulo. Musicista graduada pela Faculdade de Artes Alcântara Machado e advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito. Psicopedagoga licenciada pela UNIARA e formanda em Educação Infantil Montessori (3 a 6 anos) pelo CEMSP. Atua em projetos para a Educação Integral de crianças e adolescentes em Instituições do Terceiro Setor. Diretora Presidente do Instituto Outra História, desenvolve um trabalho de pesquisa em Educação e Desenvolvimento Humano a partir do uso das linguagens das artes e das histórias da tradição oral da humanidade. Olga Molina, Brasileira, residente em São Paulo e professora de música no ensino infantil e fundamental na Escola Graduada de São Paulo desde 1994. Especialista no Método Kodaly pela Danube Bend Summer University de Esztergom (Hungria) e em Musicoterapia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, SP. Destacam-se também em sua formação cursos sobre o Método Willems com Jacques Chapuis, Orff Schulwerk com Verena Maschat, Música para Bebés com Wakquiria Passos Claro e Josette Feres (Brasil) e Formação Musical para Crianças com Martine Barret (França). Estudou percepção musical no Conservatório Brooklin Paulista. É formada em Letras (português/inglês) pela PUC-SP e em piano pelo Conservatório Musical Paulistano. É diretora do Conservatório Musical Mozart (São Paulo) onde atua como Coordenadora dos Cursos de Formação para Professores de Música. Colaboradora do livro "Música na Escola"(MEC, 2012)
0 Comentários
Esta série de artigos foi escrita por Alexandra Rodrigues Pinto e Olga Molina¹ “A educação não mais deverá ser baseada num programa preestabelecido, mas no conhecimento da vida humana.” [1] Introdução O universo infantil tem atualmente, lugar próprio, distinto do mundo adulto, que lhe cabe por direito e necessidade. Não é demasiado afirmar que esta importante conquista deu-se em grande parte pelo excepcional trabalho de Maria Montessori. Os ensinamentos deixados em sua obra revolucionaram radicalmente as concepções tradicionais do universo psíquico e pedagógico infantil. Alguns pontos foram particularmente enfatizados como base de sua concepção pedagógica e desenvolvimentista. Um ponto fundamental em seu método é que ele coloca a criança (e não mais o professor) no centro do processo educativo, já que este se desenvolve espontaneamente através de experiências vividas no ambiente. O professor deixa de ser fonte de conhecimento e sua tarefa fundamental passa a ser guiar a criança a reconhecer e desenvolver – por si mesma –suas potencialidades. Nesse contexto, a educação é uma conquista da criança, desde que lhe sejam dadas as devidas condições. Estas condições, para Maria Montessori, são, primordialmente: - um ambiente preparado; - um educador preparado; - a incessante construção da autonomia da criança por seu trabalho diário; - a busca da concentração espontânea da criança a partir de seu interesse verdadeiro; - o agrupamento de classes, de modo que as trocas entre as crianças possam compor seu desenvolvimento e aprendizagem com base em uma convivência harmoniosa entre os diferentes estágios e aptidões infantis. Esta série de artigos será baseada nos cinco fundamentos acima. Este primeiro texto trata do ambiente preparado: 1) Ambiente preparado “O primeiro problema da educação é providenciar à criança um ambiente que lhe permita desenvolver as funções que a natureza lhe atribuiu.”[2] Maria Montessori mostra que existe uma íntima relação entre as impressões da criança, ou seja, o que ela absorve do ambiente em que vive, e a formação de sua mente (construção ou criação de sua estrutura psíquica) em todas as fases da vida, desde o nascimento. Para ela, a absorção das impressões infantis dá-se de forma direta e, a partir desta absorção a criança realiza um trabalho de criação, de composição de sua vida mental. [3] É a partir dessa concepção da psique infantil (mente absorvente) que surge a grande importância do cuidado com o ambiente para o desenvolvimento da criança. Num primeiro momento, este ambiente deveria ser preparado para acolher a criança recém nascida, de modo que não lhe fossem impostas mudanças bruscas em relação ao que fora vivido por ela na barriga de sua mãe. Este primeiro ambiente é, portanto, muito importante para que se cultive na criança seu desejo inato de conhecer e explorar o mundo, ao invés de querer repeli-lo. É a mãe então, que permeia o primeiro contato da criança com o ambiente, e a qualidade desse contato será fundamental para as fases que se seguem no desenvolvimento infantil.[4] No período seguinte, denominado pré-escolar (crianças de 3 a 6 anos), caberá à escola acolher e estimular este impulso (inato na criança) de conhecer o mundo. Trata-se, pois, de regar essa semente que fora incialmente cultivada pela mãe, dando condições para que ela cresça, floresça e frutifique. No aspecto físico, Montessori concebeu uma sala de aula especialmente preparada (ambiente particularmente adaptado) para as crianças nessa fase de vida, um ambiente aglutinador das necessidades infantis abrangendo seu corpo e sua mente.[5] Assim, a sala de aula Montessori é desenhada para que a criança possa ser autora de seu próprio desenvolvimento. Nesse sentido, as salas devem ser amplas, iluminadas, arejadas, bonitas, divididas em diversos ambientes de trabalho (internos e externos[6]), com móveis feitos especialmente para o tamanho e altura da criança, contendo uma diversidade de materiais interessantes[7], dispostos ordenadamente, ao alcance pleno da criança, de modo a convidá-la incessantemente ao trabalho e à concentração espontâneos.[8] O movimento do corpo também é uma necessidade da criança pequena (3 a 6 anos de idade), pois o corpo participa ativamente de seu desenvolvimento mental. No contexto desse ambiente escolar, à criança é, não apenas permitido – mas proposto explicitamente - a movimentação livre pela sala de aula. Enquanto caminha para buscar os materiais que necessita para realizar uma atividade, a criança está planejando a atividade, está se organizando internamente, e portanto, está educando a si mesma. O ambiente verdadeiramente educativo é então, aquele que propicia o movimento, a descoberta - a vivência concreta. Neste ambiente, as atividades e materiais caminham junto para o desenvolvimento da criança. Por exemplo, a criança aprende a ler ao mesmo tempo em que percebe que as coisas, além de terem um nome, tem também uma dimensão, um som, uma cor, um formato etc; não se trata então de uma experiência abstrata, compartimentada, a alfabetização. Da mesma forma, a criança aprende matemática porque manuseia concretamente e diariamente quantidades e qualidades de diversos materiais. Assim a aprendizagem é elemento integrador da criança com o mundo que a cerca. No ambiente Montessori, a criança está constantemente descobrindo o mundo e organizando-o na mesma medida em que se constitui internamente. Porém, o conceito de ambiente para Maria Montessori, transcende o aspecto físico. Há de se cuidar também das condições psíquicas havidas numa sala de aula, de modo que cada criança possa desenvolver individualmente suas qualidades respeitando também o desenvolvimento de seus companheiros. Ingredientes como por exemplo, ordem, disciplina, respeito, cuidado, dignidade e delicadeza, são essenciais na composição de um ambiente adequado ao desenvolvimento infantil. O responsável pelo implemento e manutenção dessas condições numa sala de aula é o professor. É ele o observador e o guia que irá impregnar esse ambiente e essas relações da qualidade de trabalho estruturante que Maria Montessori designou ‘normalização’. O tema da socialização, que também compõe o ambiente Montessori, será tratado em uma próxima publicação desta série. _____________________________________________ [1] Mente Absorvente, p. 16. [2] Mente Absorvente, p. 79. [3] “Podemos dizer que adquirimos os conhecimentos com a nossa inteligência, enquanto que a criança os absorve com a sua vida psíquica. Simplesmente, continuando a viver, a criança aprende a falar a língua da sua raça. É uma espécie de química mental que se opera nela. Somos recipientes; as impressões vertem-se em nós e nós recordamo-las e retemo-las na mente, mas ficamos diferentes das nossas impressões, como a água fica diferente no copo. A criança, pelo contrário, sofre uma transformação: as impressões não só penetram na sua mente mas formam-na. Encarnam nela. A criança cria a própria ‘carne mental’, usando as coisas que estão no seu ambiente. Chamamos ao seu tipo de mente ‘Mente absorvente’. É difícil para nós conceber as faculdades da mente infantil, mas sem dúvida se trata de uma forma de mente privilegiada.” (MONTESSORI, Mente Absorvente, p.27). [4] MONTESSORI, A Criança, pp.24/31. [5] MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 184. [6] Ambientes externos assim como plantas e animais na sala de aula, bem como janelas amplas permitindo uma integração entre o ambiente externo e o interno também contribuem na composição de um ambiente pedagógico Montessori. O contato com a natureza, com as plantas e com os diversos tipos de animais ao mesmo tempo amplia o horizonte das crianças nesse aprendizado de se relacionar com o mundo e com tudo que nele existe, enquanto permite que elas se tornem cada vez mais responsáveis por ele. [7] Os materiais foram definidos e adaptados por Maria Montessori a partir de experiências nas quais observou a escolha que as próprias crianças faziam dos materiais que lhes eram oferecidos. (A Criança. Rio de Janeiro: Portugália, pp. 108/116). [8] Maria Montessori buscou incessantemente desenvolver uma pedagogia na qual a criança pudesse experimentar em seu trabalho escolar diário, alegria e realização ao invés de fadiga e desinteresse. A via que utilizou para isso, foi permitir às crianças a livre escolha das atividades, a partir daquilo que verdadeiramente lhes interessava. Desta forma, as crianças poderiam relacionar-se diretamente com o conhecimento da vida ao invés de construir um saber abstrato e estéril a elas. Numa crítica ao sistema vigente em sua época, Montessori afirma: “ O mundo da educação é uma espécie de ilha onde os indivíduos, separados do mundo, se preparam para a vida continuando estranhos a ela.” (MONTESSORI, A Criança, p.14). ¹ Autoras:
Alexandra Rodrigues Pinto, brasileira, residente em São Paulo. Musicista graduada pela Faculdade de Artes Alcântara Machado e advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito. Psicopedagoga licenciada pela UNIARA e formanda em Educação Infantil Montessori (3 a 6 anos) pelo CEMSP. Atua em projetos para a Educação Integral de crianças e adolescentes em Instituições do Terceiro Setor. Diretora Presidente do Instituto Outra História, desenvolve um trabalho de pesquisa em Educação e Desenvolvimento Humano a partir do uso das linguagens das artes e das histórias da tradição oral da humanidade. Olga Molina, Brasileira, residente em São Paulo e professora de música no ensino infantil e fundamental na Escola Graduada de São Paulo desde 1994. Especialista no Método Kodaly pela Danube Bend Summer University de Esztergom (Hungria) e em Musicoterapia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, SP. Destacam-se também em sua formação cursos sobre o Método Willems com Jacques Chapuis, Orff Schulwerk com Verena Maschat, Música para Bebés com Wakquiria Passos Claro e Josette Feres (Brasil) e Formação Musical para Crianças com Martine Barret (França). Estudou percepção musical no Conservatório Brooklin Paulista. É formada em Letras (português/inglês) pela PUC-SP e em piano pelo Conservatório Musical Paulistano. É diretora do Conservatório Musical Mozart (São Paulo) onde atua como Coordenadora dos Cursos de Formação para Professores de Música. Colaboradora do livro "Música na Escola"(MEC, 2012) |
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
Categorias |