Atenção: Este é um texto longo. Se necessário, leia em partes. I. Angeline Lillard publicou, recentemente, um artigo no qual trata da importância dos materiais montessorianos - o link para o artigo de Lillard segue ao longo e ao final deste texto. Montessori, sobre o assunto, dizia: "O material de desenvolvimento é necessário somente como ponto de partida - Na organização dos meios externos de desenvolvimento, permanece a impressão material do desenvolvimento interior [...] A parte material não contém a impressão de toda a alma, da mesma forma que uma pegada não contém a impressão de todo o corpo. A pista de pouso e decolagem não é a esfera de ação dos aviões, mas é a quantidade de terra firme necessária ao voo, e é também o local de descanso, o refúgio, o hangar ao qual o avião deve retornar. [...] E o espírito, organizado dessa maneira sob a orientação de uma ordem que corresponde à sua ordem natural, torna-se forte, cresce vigoroso, e manifesta-se no equilíbrio, na serenidade, no auto-controle que produz a maravilhosa disciplina característica do comportamento de nossas crianças" (Spontanous Activity In Education, p.81). Lillard parte da observação de salas de aula montessorianas para refletir sobre a presença de materiais Montessori e materiais que, mesmo sendo interessantes, não fazem parte do que ela chama de conjunto "Tradicional", aqueles desenvolvidos até 1952. O que Lillard observa é muito interessante. Vale a pena ler o artigo completo, mas trazemos aqui alguns pontos mais fundamentais:
Tudo isso posto, e considerando-se que Montessori era uma reputada cientista de sua época, professora na Universidade de Roma e Psiquiatra por profissão, e Lillard é PhD pela Universidade de Stanford e professora na Universidade de Virgínia no Laboratório de Desenvolvimento Infantil, é válido ter em mente que suas opiniões acerca das formas de trabalhar em prol do melhor desenvolvimento da criança são especialmente relevantes. II. É comum visitarmos salas de aula ditas montessorianas e encontrarmos quebra-cabeças, jogos da memória, atividades de colagem com recortes de revistas. Assim como é habitual encontrar salas nas quais os materiais são usados de forma absolutamente diversa das intenções iniciais de Montessori, inclusive por meio de extensões de uso de materiais excessivamente criativas. Há aí dois problemas, que primeiro abordaremos separadamente, depois de forma conjunta. Aproveitaremos longamente as informações do artigo de Lillard aqui. Se quiser, leia-o antes de continuar. Primeiro, o uso de materiais não-montessorianos em salas Montessori. Quando Montessori desenvolveu cada um de seus materiais, não levou em consideração só quais eram do gosto das crianças e quais eram rejeitados por elas - isso foi fundamental, mas não foi o único fator. Ela também considerou quais opções, entre aquelas que agradavam às crianças, eram interessantes, eram produtivas, e de fato auxiliavam seu desenvolvimento físico e psicológico. Na sala montessoriana há quebra-cabeças, mas são de mapas do mundo, com pegadores pequenos. Com eles, as crianças aprendem a segurar coisas pequenas de formato cilíndrico - o que ajudará a segurar lápis mais tarde -, aprendem os formatos dos países contornando-os com dois dedos e sentindo todas as irregularidades de sua forma, traçam esses países no papel e aprendem algo consideravelmente fixo sobre sua realidade, absorvendo um tipo de conhecimento útil mais tarde. Isso tudo além do desafio do próprio quebra-cabeças e de aprenderem, também, os nomes, as características e as distâncias - sem a preocupação da exatidão numérica - entre pontos do globo. Da mesma maneira, temos atividades tradicionalmente montessorianas para o jogo da memória, para o recorte-e-cole, para colorir, desenhar e por aí em diante. Todas elas servem ao propósito de engajar a criança, chamam sua atenção, satisfazem sua necessidade, mas trazem junto, em sua forma, suas características e sua apresentação, aprendizados inconscientes, sementes de curiosidade, e bases para um desenvolvimento futuro que, via de regra, atividades extra-montessorianas não carregam consigo. O mesmo problema se apresenta quando analisamos o uso não-montessoriano de materiais montessorianos. Da mesma maneira que Montessori colocou muito esforço intelectual na construção dos materiais de desenvolvimento de sua prática pedagógica, pensou nas diversas formas de utilização possíveis a eles. Isso não quer dizer que não possamos descobrir formas novas de utilizá-los, assim como podemos criar novos materiais. Entretanto, precisamos pensar se, primeiro, é necessário fazê-lo e, segundo, se esses novos materiais e novas formas de utilização serão melhores do que aquelas pensadas por Montessori - talvez sejam necessários alguns anos de sala de aula somados a uma prática constante de observação científica muito atenta (com o perdão da redundância) para que possamos levar a cabo uma das duas práticas com a tranquilidade de estarmos realmente beneficiando nossas crianças. Um material montessoriano usado de forma, diremos, alternativa pode acarretar compreensões não-tão-especiais dos fundamentos por trás de cada trabalho. Para propósitos didáticos, podemos pensar nas Barras Vermelhas. Se permitirmos que sejam usadas para atividades que não tragam em si a noção de dimensão - se, como coloca Lillard, permitirmos que sejam usadas como revólveres de brinquedo, ou ainda se são usadas para construção, para bloquear caminhos, para construir formas geométricas irregulares ou como lanças de guerra - em todos os casos prejudicamos a compreensão da dimensão crescente e decrescente das Barras. E isso importa, não pelas barras em si, pois como veremos adiante os materiais vazios, em si, não importam, mas isso é relevante porque prejudica a evolução do pensamento da criança, por exemplo, quando passa às Barras Vermelhas e Azuis. As Barras Vermelhas e as Vermelhas e Azuis têm dimensões idênticas, e a primeira é utilizada primeiro para que a criança absorva a noção de dimensão, de tamanho, de comprimento, antes de ser introduzida à noção de números, de maneira que à apresentação do segundo conteúdo, aquele primeiro aprendido de forma semi-consciente (inconsciente no que diz respeito à sensação física e consciente no que diz respeito ao vocabulário) seja utilizado como base, como fundação, para a construção do novo edifício de conhecimentos. O uso alternativo das Barras Vermelhas, durante esse processo pode, por exemplo, prejudicar essa ligação inconsciente, já que o material será mais prontamente associado com as brincadeiras diversas do que com os aprendizados sensorial e vocabular inconscientemente relevantes. III. A forma de compreender os dois problemas acima que os engloba em uma só questão maior é o fetiche. A ideia básica do fetiche é a da consideração do objeto por si só, sem a percepção do trabalho que o constrói ou do significado principal dele - a depender da perspectiva social ou psicológica que se tome por princípio de raciocínio. O material montessoriano, exposto em uma sala vazia, em um museu, de nada vale a não ser por seu valor histórico ou didático para adultos. O material montessoriano assim exposto é só isso: material montessoriano. Não é, como queria Montessori, material de desenvolvimento. Para ser de desenvolvimento, é necessário que haja trabalho junto deste material, e é aí que entra o trabalho da criança. O que de fato faz existir o material de desenvolvimento é o tipo de interação que se constrói com ele, o tipo de trabalho envolvido em sua utilização, desde a apresentação do professor até a manipulação do aluno. Se o material montessoriano se torna brinquedo, decai. Decai porque não serve ao desenvolvimento da criança tanto quanto poderia, se tomado dentro de um ambiente pensado em todas suas qualidades, assim como dentro de um conjunto de outros materiais que lhe darão suporte anterior e motivo para existir em relação a atividades futuras. A Torre Rosa só faz sentido em uma sala na qual haja a Escada Marrom a sucedendo e um Material Dourado no futuro, com dimensões encantadoramente familiares. Só faz sentido se servir ao empilhamento ordenado, cuidadoso, desafiador. Só faz sentido se o cubo menor da Torre serve para a correção autônoma da criança e ela pode checar sozinha a exatidão das diferenças de dimensão de um cubo para o outro. A Torre Rosa só faz sentido em uma sala montessoriana, mas mais do que isso, com o uso projetado por Maria Montessori, e que serve de fato ao perfeito desenvolvimento infantil. A Torre, considerada em si mesma, porque é bonita, porque é forte, porque é símbolo de Montessori, é fetiche. É objeto de desejo, admiração e cuidado de adultos, mais do que objeto de trabalho de crianças. Ela só existe como material de desenvolvimento se for usada da melhor forma possível para auxiliar o desenvolvimento infantil. Há outros materiais para outras finalidades, as da Torre são aquelas específicas dela, e só podem ser realizadas se o ambiente é todo bem feito e permite a concentração, se o professor é atento à apresentação dos materiais e ao bom funcionamento de toda a sala, se todas as crianças têm toda a liberdade para escolher qual, entre os materiais que conhece, vai utilizar a cada momento de seu dia. Se a utilização dos materiais é forçada, se não há tempo para repetição, se o ambiente é o de uma escola infantil tradicional e há um pequeno espaço para materiais montessorianos… Bom, ao menos temos a Torre Rosa, pode ser um bom brinquedo e é melhor do que muitos outros. Mas não será, ainda, material de desenvolvimento. O mesmo ocorre quando um material não-montessoriano é colocado em sala de aula. Há escolas ditas montessorianas nas quais verdadeiramente transbordam materiais das estantes. Em algumas, mal há espaço para as mãos da criança entre uma bandeja e outra e, há ainda, espaços nos quais há caixas de materiais sobrepostas. Não há necessidade nem justificativa para tal excesso de materiais. As crianças não usam todos e, especialmente, não usam todos de uma vez. Se as crianças gostam, como sempre acontece, de colorir as formas geométricas, isso não é motivo para introduzir na sala os mais diversos tipos de atividades de colorir. As formas geométricas satisfazem as necessidades da criança e o desenvolvimento estético. Além disso, há ainda os mapas desenhados e coloridos por elas, a possibilidade do desenho livre, as bandejas de folhas cujo contorno também se pode traçar e colorir. Há, enfim, diversidade suficiente entre os materiais montessorianos, de maneira que a criança poderá satisfazer suas necessidades internas. Além disso, a disponibilização de muitos materiais redundantes, que trabalhem exatamente a mesma habilidade - por exemplo, a presença de cinco ou seis bandejas de recortar, com padrões complexos os mais diversos - traz à tona a possibilidade de muitas crianças passarem todo o seu tempo fazendo a mesma coisa, quando lhes entreteria de igual maneira, com ganho intelectual e cognitivo maior, alternar entre atividades que ressoassem dentro de si e ao mesmo tempo permitissem o exercício de habilidades distintas e variadas. A necessidade adulta de uma abundância de materiais, muitas vezes iguais, e quase sempre redundantes, é novamente sintoma da presença do fetiche em sala de aula. Orgulhamo-nos de poder ter muitas coisas, e de proporcionar à criança variações de um mesmo tema em número tal que sejam inesgotáveis. A nossa representação do paraíso perdido é uma de abundância total. A representação montessoriana é uma de equilíbrio perfeito. IV Em nossos primeiros anos de sala de aula, é melhor seguir Montessori. Sabemos, por pesquisas diversas, que a abordagem montessoriana mais idêntica à original (aquela da Associação Montessori Internacional) produz excelentes resultados, tanto no que diz respeito ao desenvolvimento cognitivo e psicológico das crianças quanto no que concerne ao seu bem estar. Sabemos muito pouco sobre as outras formas de aplicação de Montessori, especialmente porque essas variam consideravelmente de escola para escola. Finalmente, se percebermos de fato a necessidade premente de novos materiais ou novas formas de utilização, ou ainda variações criativas envolvendo mais de um material de maneiras diversas - e vale dizer que de acordo com professores bastante experientes essa necessidade é uma ilusão - então que meditemos o suficiente para separarmos o fetiche da necessidade real. Ao inserir essa nova prática, ou esse novo objeto, que observemos o suficiente seu funcionamento e possamos ver para além da atração que exerce sobre a criança, tentando notar se, de alguma maneira, a novidade se encaixa no imenso quebra-cabeças que é o conjunto tradicional de materiais de desenvolvimento elaborados por Maria Montessori. Aí, sim, estaremos executando verdadeiramente uma faceta de nosso trabalho, mais do que quando proporcionamos uma abundância redundante de objetos de divertimento pouco úteis ao perfeito desenvolvimento da criança.
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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