Montessori insistiu: o que fazia não era uma continuação melhorada do processo educativo em vigor. Inicialmente, não era sequer educação. O que fazia era ciência. Depois, por implicações as mais diversas e por uma preocupação social constantemente presente na personalidade de Montessori, sua Pedagogia Científica transformou-se em método, foi publicada em livro, ensinada em cursos, aplicada em escolas. Seu fundamento, entretanto, permaneceu sendo a ciência. Além de ser ciência, explicava Montessori, o que desenvolvera era uma revolução. Segundo ela, uma vez aplicado, o método Montessori não deixaria de mudar nada. Por ser aplicado à própria constituição humana e ser uma ferramenta para o melhor desenvolvimento do humano em si, a pedagogia científica seria responsável por transformar a realidade social como a conhecemos. Para Montessori, o que ela fez de verdade foi descobrir a criança. O método, a pedagogia em si, foi decorrência de sua descoberta. Ela descobriu que a criança tem características únicas e admiráveis, descobriu que essas características se manifestam melhor quando a criança é deixada em liberdade em um ambiente preparado, e descobriu que todas as crianças se desenvolvem de acordo com um plano de desenvolvimento relativamente semelhante a todas elas, passando por períodos específicos durante os quais determinados aprendizados se dão com maior facilidade, e funcionam melhor auxiliados por determinados meios. A aplicação desta descoberta é o Método Montessori. Thomas Kuhn, autor de "A Estrutura das Revoluções Científicas", descreve uma revolução científica como uma descoberta ou um conjunto de descobertas que gerem problemas suficientes para uma teoria a ponto de ela não poder mais existir, e então uma nova teoria, melhor e mais completa, surgindo para dar conta destes problemas, inviabiliza as teorias anteriores, tornando-as impossíveis. Dois exemplos de revoluções científicas são: 1. A descoberta de que a Terra girava em torno do Sol: Esta descoberta explicava o movimento de todos os planetas de forma elegante, além de fazer sentido dos movimentos das estrelas, do dia e da noite, das estações do ano, e de diversos cálculos astronômicos intrincados. Uma vez compreendida e aceita, a ideia de que a Terra, e não o Sol, move-se mais, estavam inviabilizadas todas as ideias anteriores, e era necessário abandonar todas as pré-concepções em favor desta, nova. 2. A teoria da biogênese (a vida surge da vida): Esta descoberta explicou que a vida não surge do nada, não de geração espontânea, mas de alguma vida anterior. Não basta juntar roupas sujas, pedaços de comida e óleo para que surjam ratos. É necessário que haja outros ratos antes. Da mesma maneira, borboletas não surgem das flores, mas das lagartas, e assim por diante. Esta descoberta inviabilizou a geração espontânea e levou a um novo campo de investigações. Outras descobertas, como a Gravidade, de Newton, o Inconsciente, de Freud, as Placas Tectônicas e a Evolução das Espécies, também inviabilizaram todas as teorias anteriores, deram conta de dezenas de problemas anteriormente insolúveis dos campos de investigação específicos e deram origem a novas ciências e a novas formas de raciocínio. Para Kuhn, as revoluções científicas acontecem com muito mais facilidade no campo das ciências normais, biológicas e exatas, do que no campo das ciências sociais ou humanas. Segundo ele, no campo das sociais, incontáveis teorias surgem o tempo todo e qualquer uma pode ser adotada por qualquer um, e é possível provar que aquela é mais correta que as outras, com quase qualquer uma. A educação, entretanto, se encontra na interface entre estas ciências, e não é, como se pensa geralmente, uma ciência exclusivamente social e humana. É também, e em larga medida, um ciência biológica, quando encarada de acordo com um método científico. Para compreender exatamente o que isso significa, vale ver as falas do Dr. Steve Huges, disponíveis online, e os artigos e livros de Angeline Lillard. Além disso, é importante tomar contato com as investigações de Steven Pinker, acerca da natureza do pensamento humano. Anteriores a todos estes porém, e antes de diversos outros investigadores biológicos da educação, veio Montessori. Ela foi a primeira a anunciar contando com um sistema de trabalho pedagógico que comprovava sua descoberta, que a criança se desenvolve de acordo com um plano inato, e que há potencialidades na infância que só podem se desenvolver perfeitamente em determinados períodos da vida. Seu aparato prático é único na história da educação e a completude de sua teoria advém de meio século de observação e dá origem a infinitas aplicações. As descobertas de Montessori influenciaram o pensamento de Jean Piaget e estão presentes em obras tão abrangentes quanto a de Noam Chomsky, um dos maiores linguistas cognitivistas da atualidade. Pelo fato de Montessori ser um procedimento que pode ser repetido em qualquer lugar do mundo, com crianças de qualquer classe social, e gerar os mesmos resultados em todos os contextos, é possível considerar as descobertas de Montessori como hipóteses comprovadas, e livros como Mente Absorvente e A Criança como documentos científicos válidos. Seu experimento, em linguagem científica, é replicável com sucesso. De acordo com Kuhn, portanto, Montessori é originária de uma revolução científica: resolveu problemas anteriormente insolúveis, dando origem a uma teoria do desenvolvimento que gera uma gama nova de investigações e a um método educacional que, ao mesmo tempo, comprova a ineficácia do ensino tradicional, inviabilizando-o como abordagem cientificamente válida, e revela que a criança é capaz de se educar e, mais que isso, desenvolve-se de forma autônoma. Sabemos que assim é, e vemos todos os dias em nossas salas de aula e no mundo os resultados desta nova abordagem científica da infância. Entretanto, em larga medida, Montessori continua sendo ignorada ou barrada entre os muros dos maiores centros de investigação científica do mundo. No Brasil e fora dele, Montessori ainda é persona-non-grata entre as paredes da academia, e suas descobertas não são levadas em consideração - pelo menos de forma explícita - quando se discute o desenvolvimento da criança e suas necessidades bio-psico-sociais. A neurociência vem hoje comprovando não só a eficácia de Montessori, mas o acerto de suas afirmações mais contundentes. A plasticidade cerebral da criança pequena, a tendência à repetição, a habilidade e o prazer de fazer escolhas, a atividade manual e tantas outras colocações da obra montessoriana são hoje lugar comum entre os cientistas do cérebro. Com o 143º aniversário de Maria Montessori, e com todos os que virão, é nosso trabalho - trabalho daqueles que se identificam com a abordagem de Montessori e a compreendem em sua completude - é nossa tarefa disseminar as descobertas feitas por aquela que provavelmente foi a maior investigadora da infância na história da ciência. É nosso trabalho tornar a influência de Montessori, já presente, explícita na ciência atual, e conhecida por aqueles que se ocupam do estudo da criança, na sala de aula, no laboratório e nas universidades. É nosso trabalho tornar as descobertas de Montessori uma real revolução científica, patente e percebida. Uma revolução que resolveu problemas anteriores, inviabilizou uma forma de trabalho e uma forma de compreensão da criança, e deu origem a soluções e a novos problemas para investigação. Acredito que a única forma de finalizar este texto, em tempo de multimídia, seja entregar a palavra a Sir Ken Robinson, que fala no vídeo abaixo sobre a necessidade de uma revolução na aprendizagem:
2 Comentários
Montessori insistia em um ponto, simples, profundo: olhem para a criança. Não para mim, mas para a criança. O método Montessori só é o que é porque nossa percursora escolheu olhar para a criança em vez de olhar somente para si mesma, e em vez de dedicar-se a provar uma teoria já existente. Não a interessavam teorias. Interessava-lhe de fato ajudar a vida da criança. E é isso que deve interessar-nos também. A partir do momento em que, observando a criança sem nenhuma preconcepção teórica e despindo-se de quaisquer preconceitos, se percebem nela características que ressoam aquilo que aprendemos com Montessori, faz sentido desejar se tornar um professor montessoriano. Antes disso não. Não faz sentido que decidamos caminhar em uma direção tão mais desafiadora do que a docência tradicional, não faz sentido ter que estudar mais, escrever mais, preparar mais materiais. A menos, é claro, que percebamos, em observação sistemática e o mais livre possível de concepções apriorísticas sobre a criança, características apontadas por Montessori. Entretando, quando percebemos que a criança é, ainda hoje e em qualquer lugar do mundo, exatamente aquela descrita pela doutora em meados do século XX, passa a haver poucas opções além daquela inaugurada por Maria Montessori. A única possibilidade de educação, então, nos parece ser a da Pedagogia Científica. E se é este o caso, vale a pena nos pensarmos não só como seguidores de Montessori. Não é só isso que devemos ser. Mas como seguidores da criança. E para isso, algumas características precisam brotar em nossas personalidades. Montessori disse: A preparação que nosso método exige do professor é o auto-exame, a renúncia à tirania. Deve expelir do coração a ira e o orgulho, deve saber humilhar-se e revestir-se de caridade. Estas são as disposições que seu espírito deve adquirir, a base da balança, o indispensável ponto de apoio para seu equilíbrio. Nisso consiste a preparação interior o ponto de partida e a meta. Isso é difícil, e é difícil para todos nós. É um desafio de vida inteira e de todo dia. Mas não precisamos fazer isso sem ajuda, nem sem ferramentas. Existem diversas fontes que nos ajudam a pensar sobre nossa própria humildade, sobre como despertar a compaixão, que leva à caridade, dentro de nós. Renunciar à tirania, à ira e ao orgulho são passos imensos para se tomar de uma vez, e maiores se tomados sozinhos. Por isso, escolhi trinta ferramentas para ajudar neste trabalho. As três listas que seguem são muito pessoais, e você vai descobrir que algumas coisas funcionam para você e outras não. Você também descobrirá que há muito que funciona e não está nas listas. Comente neste post com o que você achar que pode ajudar. No próximo artigo, tratemos três técnicas que auxiliam no autoconhecimento. ___________________________________________ Livros: 1. O Pequeno Príncipe É um livrinho de leitura simples, poucas páginas, letras grandes e muitas figuras belas. Um dos meus favoritos, sem dúvidas. Vale ler porque nos dá uma noção clara de como funciona a mente da criança, quais são seus valores e qual a imagem que têm dos adultos. 2. Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade É a autobiografia do Gandhi. Vale ler, primeiro porque é do Gandhi, e ele era um pacifista incrível, um homem fortíssimo e amigo querido de Montessori. Depois, porque ele se deu como objetivo ser verdadeiro, e isso o levou a reexaminar os próprios defeitos com muito afinco. É uma aula sobre autocrítica e sobre a vida. 3. A História da Minha Vida Autobiografia da Helen Keller, amiga e admiradora de Montessori, mas mais que isso: uma mulher que perdeu visão e audição ainda bebê, e aprendeu a escrever muito bem, e até a falar, com bastante dificuldade. Escreveu mais de dezoito livros, mas este é o mais famoso. Ensina sobre superação e o papel do professor na vida de uma criança. 4. A Criança Esse é da própria Montessori. Um exame minucioso de o que é a criança, como ela funciona, como podemos trabalhar com ela. Vale ler para refletirmos e conhecermos a natureza fundamental do ser humano. Se todos nós começamos crianças, conhecer a criança é nos descobrirmos. 5. Venha, Seja Minha Luz Uma coleção das cartas confessionais de Madre Teresa de Calcutá. Ao contrário do que pensamos, Teresa não era feliz, nem se regojizava o tempo todo. Mas ela tinha certezas e ideais, e não os abandonava por nada. O sorriso permanente no rosto de Teresa, assim como sua força imensa mesmo em um corpo idoso, são explicados aqui. Vale ler por isso. 6. A Arte da Felicidade Livro do Dalai Lama e de um psiquiatra norte-americano, que traz a linguagem do mestre budista para mais perto dos leitores ocidentais, assim como das nossas crenças e nossos valores. Vale ler porque o livro trabalhar diversas características do ser humano e, por meio de argumentação e dicas práticas, nos ajuda a melhorar. 7. O Livro das Virtudes I e II Duas deliciosas coletâneas temáticas de contos, poesias, fábulas e ensaios de todas as épocas e todos os lugares, traduzidos com primor e organizados de forma bela. Vale ler porque se aprende muito sobre as virtudes que o ser humano pode desenvolver e os disfarces que usamos para deixar de desenvolvê-las. 8. Eclesiastes Um dos livros da Bíblia. É especialmente agradável porque foi escrito por um dos sábios da antiguidade e traz reflexões profundas sobre o valor das ações humanas. Vale ler porque alguns capítulos nos desconfortam, nos fazem ver nossos próprios defeitos, enquanto outros nos dão um vislumbre tão belo do mundo que fazem brotar sorrisos. 9. Obra de Khalil Gibran Não dá para indicar um livro do Gibran, e o mais famoso, O Profeta, não é tão bom assim. Mas uma coletânea de escritos dele sempre traz maravilhas. São textos que em geral tratam de um ser humano antes e depois de desenvolver a humildade. Vale ler para compreender uma das formas pelas quais esta transformação pode acontecer. 10. Os Miseráveis Uma das obras primas da literatura universal e possivelmente um dos livros mais belos, desde sempre. Os primeiros capítulos são especialmente interessantes para se trabalhar a humildade. Vale ler porque ensina sobre a natureza fundamental do ser humano e sobre os sofrimentos do mundo. ______________________________________________ Filmes: 1, Compaixão e o Verdadeiro Significado da Empatia Palestra curta no TED, que pode ser encontrada rapidamente no Google. Joan Halifax é monja budista e nos fala sobre como a compaixão brota no ser humano. Vale ver para aprender com quem de fato conhece o tema e vem trabalhando pela humanidade nas situações mais adversas. 2. Como Estrelas na Terra Filme poético e belíssimo sobre um menino com dislexia e um professor que o compreende. Vale ver porque o professor contraria tudo o que é vigente e busca infinitas formas de ajudar a criança, e também porque ajuda a entender como funciona a mente de uma criança disléxica. 3. Escritores da Liberdade História real de uma professora que aceita o desafio de ensinar uma sala de alunos difíceis, em uma escola na periferia de Nova Iorque. Vale ver porque ajuda a enxergar como podemos estar errados em nossas pré-concepções e como observar a criança pode ser o melhor caminho para ajudá-la a alcançar o sucesso e a felicidade. 4. Gandhi De novo, é a história da vida de Gandhi. Dessa vez, vale ver porque admirando a figura de um líder servidor, podemos nos ver em perspectiva e, ao mesmo tempo, perceber defeitos nossos e qualidades que espelhamos. Ajuda no desenvolvimento do idealismo e no trabalho com educação e paz. 5. O Milagre de Anne Sullivan É o filme dos primeiros anos de vida de Helen Keller, auxiliada por sua incrível professora, Anne Sullivan. Sullivan teceu infinitos elogios ao trabalho de Montessori e foi uma mulher que, além de lutar contra a própria deficiência visual, abriu caminho para o trabalho com surdos-cegos no mundo todo. Vale ver para adotá-la como ídolo, mesmo. 6. Maria Montessori: Uma Vida Dedicada às Crianças Não dá para pular Montessori. Além de ser a história da vida dela, vale ver porque nos mostra como pode ser necessário enfrentar obstáculos quando se defende uma forma de educação radicalmente diferente, e ao mesmo tempo manter uma integridade de personalidade e uma humildade tais que nos permitam aprender sempre e muito, especialmente com a criança. 7. Madre Teresa Novamente, Madre Teresa de Calcutá. Aqui, conta-se a "carreira" dela e mostra-se sua obra do ponto de vista de quem a admira, e não a partir da ótica de Teresa ela mesma. Vale ver para tentar entender um pouco melhor o que significa compaixão, humildade e caridade, em estado puro. 8. O Corcunda de Notre Dame Indiquei o filme, e não o livro, porque já tinha indicado outro do Victor Hugo (Os Miseráveis), mas o livro vale também. Se você vir o filme, fique especialmente atento à figura de Esmeralda, a cigana. Na versão da Disney, a música "God Help the Outcasts", de Bette Midler, é alterada levemente, mas é especial para nós. 9. Poder Além da Vida História sobre um competidor esportista que quebra as duas pernas e aprende, com um mestre, a se descobrir por dentro. Vale ver porque é um filme leve e agradável que tem muito a ensinar sobre força de vontade e humildade diante de situações adversas. 10. Karatê Kid Todo mundo conhece. Vale ver qualquer versão, todas têm muito a ensinar. Mas a de 2010 tem uma série de cenas sobre colocar e tirar o casaco que me fez lembrar da Vida Prática imediatamente. Vale ver porque ensina sobre obediência aos que sabem mais, sobre humildade e sobre trabalhar duro para cada pequena conquista. ______________________________________________ Músicas:
1. Blowing in the Wind http://www.youtube.com/watch?v=vWwgrjjIMXA 2. Se Eu Quiser Falar com Deus http://www.youtube.com/watch?v=3eKnerBU4HY 3. Caçador de Mim http://www.youtube.com/watch?v=Se9XYKHQi3Y 4. God Help the Outcasts http://www.youtube.com/watch?v=aWgeNig4eG4 5. Ao Nosso Filho, Morena http://www.youtube.com/watch?v=0aFEReKlG38 6. Vivere https://www.youtube.com/watch?v=xgSVLgyqGMc 7. You Have Made a Difference https://www.youtube.com/watch?v=vwsKWiXlA78 8. Yanni Live at The Acropolis https://www.youtube.com/watch?v=WSd7CgRtzx4&list=PL896859CCB62BFB6A 9. Caderno https://www.youtube.com/watch?v=feUxES-2Bq4 10. Spider's Web https://www.youtube.com/watch?v=tK2z1G20_9U |
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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