Falamos bastante de Montessori como uma educação para a Paz. Hoje, aqui, eu quero pensar de uma forma levemente diferente. Quero pensar em Montessori como uma Educação em Paz. Há uma pequena diferença. Pensar em uma Educação para a Paz por si só já é um objetivo muito nobre, e é nobilíssimo se levarmos em consideração o período histórico em que a proposta de Montessori se fez: entre e pós Guerras Mundiais. Nesse contexto, pensar em uma educação para a paz é pensar em um futuro possível, em uma geração seguinte que possa viver de uma maneira melhor e mais humana, num mundo diferente e mais digno para todos, que virá pelas mãos daqueles que agora ainda são pequenos, mas que, porque passaram por um processo educacional para a Paz, poderão construir a Paz mesmo depois de já não estarmos mais aqui.
Quem vem estudando o humano [1] [2] [3] vem percebendo, no entanto, que é difícil levar paz ao outro sem ter paz consigo. É difícil, para mim, educar o outro para a paz, se eu mesmo não vivo em paz, se eu mesmo não busco a paz em cada passo e palavra. Educar para a paz é educar-se para a paz. Daí, Educar em Paz. Montessori disse em Mente Absorvente que a revolução que ela propunha não poderia ter nada de violento, porque qualquer grau de violência indicaria o fracasso de todo o seu processo de salvação da humanidade. Se nossa revolução é uma revolução pacífica, então ao longo de todo o processo, nós devemos ter a paz não só como objetivo, mas como modus operandi. Montessori propõe para nós, em 1913 [4], que o conceito de liberdade que ela utiliza é biológico, e que para ela a liberdade é o conjunto de condições necessárias à vida. Assim, uma árvore é livre quando pode ter suas raízes muito firmes em um solo nutritivo e espaçoso, mas uma gaivota é livre quando pode voar distâncias saudáveis e encontrar alimento adequado. A Terra, proporia Montessori, entrega aos seres viventes tudo aquilo de que necessitam para a liberdade biológica, e a satisfação dessas condições necessárias à vida seria também base para a construção da paz – é claro, se pensarmos um pouco, que quando todos tiverem as condições necessárias à sua existência preenchidas, não há mais pelo que guerrear, senão por nossas angústias e ilusórias faltas, e essas, precisamos crer, podem ser prevenidas por um processo educacional pacífico. Se eu proponho que partamos para uma visão da educação para a Paz mais radical, não me afasto de Montessori, mas me acomodo sob sua sombra e sob a memória de suas palavras, e proponho que façamos como ela e alcancemos os conhecimentos mais fundamentais sobre levar paz ao outro para que utilizemos esse conhecimento em nossa prática pedagógica. Para que possamos educar em paz, precisamos desenvolver um mesmo tipo de atitude, em duas direções diferentes: para dentro de nós, e para fora de nós. Ele precisa acontecer para dentro de nós primeiro, e não pode ser ignorado, porque se não trabalharmos conosco mesmos em paz, não podemos trabalhar assim com as crianças. O processo que precisamos desenvolver consiste em uma afirmação e duas perguntas [5]. Essa prática deve ser repetida sempre que houver um problema. O primeiro passo é a afirmação: Oi, eu estou aqui para você. Quando uma criança não nos obedece, tenta nos agredir ou faz qualquer coisa que nos faça duvidar de nós, surgem muitas sensações ruins, misturadas e confusas, entre a garganta e a cintura. Sensações pesadas, apertadas, quentes, frias, escuras, doloridas. E nós damos vazão a isso por meio da agressão contra a criança ou tentamos eliminar isso por meio da agressão contra nós mesmos. O processo aqui é um terceiro. É pegar esse sentimento no colo – como você pegaria um filho que chora – e dizer a ele: Oi, eu estou aqui para você. Sem repúdio, nojo, medo. Ele é só um sentimento, indefeso, e precisa de atenção e carinho. Oi, eu estou aqui para você. Só isso, só duas ou três respirações profundas enquanto você diz para esse sentimento dentro de você que você está aqui, isso deixa o sentimento em segurança, mais tranquilo, mais em paz. Exatamente como acontece com o bebê carregado no colo. Oi, eu estou aqui para você. O segundo passo no processo interior é descobrir o que disparou o sentimento confuso. Para isso, não tem jeito, precisamos segurá-lo no colo e perguntar: O que aconteceu, meu querido? E ele vai responder. Ele vai chorar um pouco, e espernear um pouco. Talvez ele te agrida um pouco, porque está desesperado, e então te segure forte e soluce um pouco. Nesse meio tempo, você respira, e você preta atenção na sua respiração. Inspirando, perceba o ar entrando, e expirando, perceba o ar saindo, enquanto você espera a resposta do seu sentimento confuso, e conforme ele sentir que você está lá mesmo para ele e que você quer saber mesmo o que aconteceu, aos poucos ele te conta, e ele fica mais tranquilo, porque quando contamos coisas nós ficamos mesmo mais tranquilos, e acontece o mesmo com sentimentos confusos. E aí, você não precisa ter medo da resposta: talvez ela te revele aspectos da sua personalidade que você preferia ignorados, mas Montessori nos diz que para corrigirmos defeitos de nossas personalidades, o primeiro passo é conhecer bem cada um deles [7]. Deixe seu sentimento confuso falar, e repita com carinho: O que aconteceu, meu querido? O que aconteceu? Finalmente, o terceiro passo é permitir que ele se acalme nos seus braços e aí, finalmente, perguntar, com seriedade, consideração e cuidado: O que eu posso fazer para ajudar? E você vai descobrir, estarrecido, que a resposta geralmente é simples. Pode ser “Ir lá fora, com uma criança, procurar uma flor para decorar a sala”. Pode ser “Tomar um copo d’água em silêncio, olhando pela janela”. Pode ser até “Apresentar um material importante para a Thaís, enquanto peço para um colega cuidar do ambiente”. As soluções quase sempre são simples, no curto e no longo prazo, e felizmente são muito repetitivas. Você descobrirá, aos poucos, que um método delicioso de estar em paz é se portar sempre como nos portamos na apresentação de um material de Vida Prática: Respire, Sorria e Vá Devagar. E quando estiver difícil, retorne, Respire, Sorria e Vá Devagar. O retorno constante à postura de carinho e cuidado conosco nos ajuda a ter carinho e a cuidar do ambiente, a ter carinho e a cuidar das crianças. Aos poucos, respirar, sorrir e ir devagar tornam-se sua identidade, e as palavras e os gestos ríspidos desaparecem lentamente. No próximo texto, nós vamos retomar esse processo, a a firmação e as duas perguntas, e ver como elas podem ser feitas de dentro para fora, para ajudar a ver melhor a sala, a entender melhor nossas crianças e a depositar afeto e atenção em nossos ambientes preparados. Este texto é dedicado a Paige Geiger, que aniversariou ontem, e a Marion Wallis, diretoras do Centro de Educação Montessori de São Paulo, que nos ensinam a educar em paz e para a paz, em cada gesto e palavra. Sempre obrigado. - Referências: [1] Brené Brown – A Coragem de Ser Imperfeito [2] Matthieu Riccard – A Revolução do Altruísmo [3] S.S. o Dalai Lama – A Arte da Felicidade [4] Maria Montessori – The 1913 Rome Lectures [5] Thich Nhat Hanh – em https://www.youtube.com/watch?v=NJ9UtuWfs3U [6] Maria Montessori – Mente Absorvente (esgotado em editora) [7, base para todo o texto] Maria Montessori – A Criança (esgotado em editora)
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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