Há alguns meses o blog do CEMSP publicou um texto sobre as vantagens de escolas que utilizavam Montessori de forma estrita, aderindo às ideias e práticas sugeridas por Maria Montessori, e as desvantagens das escolas que fazem concessões a práticas não-montessorianas, e que acabam por desenvolver um trabalho de qualidade inferior.
Muito frequentemente, o que ocorre em escolas montessorianas é que a(o) fundadora(-) ou a primeira direção da escola era um estudioso de Montessori, um professor formado ou alguém profundamente encantado pela criança. Posteriormente, a escola passa a ser administrada por educadores por vezes muito bons, ou por administradores também bons, mas que não têm o mesmo encanto, ou não enxergam a educação da mesma maneira. A escola se mantém “montessoriana”, porque não pode se chamar de nenhuma outra coisa, mas gradativamente abandona a liberdade, a escolha, a independência, e incorpora o uso de papel, apostilas, livros didáticos, atividades em grupo constantes e aulas extra no meio do dia. Pouco a pouco, a escola que se chama e se acredita montessoriana não ajuda as vidas das crianças mais do que uma escola tradicional razoável. Mas, lá dentro, em algum lugar, alguém sabe que deveria ser diferente. Não existe um caminho só para revitalizar a prática montessoriana de uma escola. O que sugiro abaixo deriva de minha experiência profissional com várias instituições e educadores, mas há caminhos os mais diversos. Também, o que sugiro aqui é um passo-a-passo que tem como primeiro objetivo ajudar você ou sua escola a acreditarem de novo em Montessori e na criança, para depois tomarem atitudes mais ousadas. Vamos lá? 1. Respire, sorria e vá devagar. Recebi esse conselho num blog de produtividade que citava um monge vietnamita. Depois de anos, li a mesma ideia em Creative Development in the Child, de Montessori. Hoje, estou convencido de que esta é a primeira mudança, a mais prática e a de maior impacto na sala. Treine respirar enquanto você caminha, treine caminhar no ritmo da respiração, e treine sentir alegria. Isso nos ajuda a enxergar pequenos milagres, que ocorrem mesmo em salas menos estruturadas, e ver os pequenos milagres nos dá energia e serenidade para perseguir nossos ideiais. Quando o adulto respira, sorri e vai devagar, a criança se tranquiliza e também consegue se sentir mais serena, alegre e disposta a trabalhar. Veja a citação de Montessori: Em lugar de executar as ações naturais de todos os dias, sem pensar, ou de maneira imperfeita, acreditamos que fazê-las de forma atenta, consciente, cuidadosa e tão perfeita quanto possível, é o primeiro passo para alcançarmos a perfeição. Esse é um dos caminhos, existem muitos. Devemos fazer as coisas porque devemos fazê-las, e devemos fazemos como elas vierem. Devemos usar tudo, para que aperfeiçoemos tudo. Se tornar mais consciente, esse é o caminho da perfeição; quanto mais ideias, quanto mais ações executamos, mais vamos dominando, mais perfeitos nos tornamos. Essa é a orientação no sentido da perfeição. […] O caminho da perfeição é aquele no qual todas as ações que executamos em nossas vidas, nós pensamos, e executamos como um meio de chegar à perfeição. – Maria Montessori, Creative Development in the Child Conforme você faz as coisas mais devagar na sala, aproveite para observar as crianças. Caminhe sempre com um bloquinho de anotações no bolso, e um par de canetas. Assim, a qualquer momento, você pode escrever aquilo que lhe parecer importante. Como treino, tire quinze minutos por dia, por professor, para observar as crianças sem interferir em suas ações, para passar a conhecê-las melhor. Procure fazer anotações bastante objetivas, que incluam aquilo que aconteceu, mais do que a sua opinião sobre o assunto. 2. Trabalhe o layout da sala. A sala montessoriana tem um layout bem variável, mas bem específico também. Em muitas escolas, é comum que as estantes fiquem em volta da sala, e no meio fiquem mesas e a Linha, com espaço livre para os tapetes. O layout mais adequado é um pouco diferente. Na sala montessoriana, deve haver nichos para materiais Sensoriais, de Linguagem, de Aritmética, de Vida Prática, Ciências, História e Geografia. O layout aberto e comum não inviabiliza Montessori, de fato, escolas boas o utilizam, inclusive. Mas modifica-lo pode ajudar bastante. Nele, pode haver mais eco, um caminhar muito mais veloz por parte das crianças, um aglutinamento mais frequente e, portanto, uma dificuldade maior na individualização do trabalho. Se as crianças já encontraram seu equilíbrio interior natural, isso é menos importante. Mas se a escola precisa retornar a Montessori e ajudar as crianças, isso importa. 3. Recupere a Vida Prática. Marion Wallis, diretora do CEMSP, escreveu um ótimo texto sobre Vida Prática aqui. Pensando a partir dele, é fácil entender porque a Vida Prática é fundamental para a revitalização de uma sala ou escola. Você não deve incluir a Vida Prática toda de uma vez, se ela se perdeu, mas algumas coisas são importantes: (1) os exercícios precisam ser bonitos e os objetos precisam ser de tamanhos adequados às mãos das crianças; (2) precisa haver alguns exercícios com água; (3) deve haver demonstrações de cada atividade para a criança conforme ela progride; (4) precisa haver Vida Prática dentro da sala, e não só em uma área específica da escola. 4. Recupere a Livre Escolha devagar. Talvez hoje sua escola trabalhe frequentemente com atividades coletivas, rodas, projetos coordenados pela professora e coisas assim. Mudar isso não acontece da noite para o dia. Inclua pequenas opções no começo (usar papel verde ou azul; fazer primeiro isto ou primeiro aquilo; cortar círculos ou quadrados...) e observe como o bem-estar das crianças melhora. Depois, inclua períodos (20, 30, 40 minutos) de livre escolha no dia, em que as crianças podem fazer qualquer das atividades dispostas nas estantes. Veja como isso, aliado aos três passos anteriores, aumenta a tranquilidade e o foco dos alunos. 5. Viva a Natureza! A natureza é parte integrante do currículo montessoriano, e é fundamental para o desenvolvimento da criança que isso seja levado muito a sério. Você pode ver aqui os vídeos de um seminário sobre Infância e Natureza realizado ano passado pelo Instituto Alana, e aqui você pode se inscrever para o deste ano. Coloca plantas na sala. Muitas plantas. E coloque plantas na área externa, nos corredores, no parque, em todos os lugares onde couber plantas. Se você puder encontrar espaço para um aquário minimamente confortável, também coloque peixes na sala. Você verá que essas pequenas modificações aumentam a capacidade de observação das crianças, sua compaixão e sua colaboração. 6. Formação dos Professores e Administradores. Desde o começo, é importante que a equipe da escola, pedagógica e administrativa, seja formada em Montessori. A formação do professor é da maior importância para o bom funcionamento da escola e para que as vidas das crianças sejam genuinamente auxiliadas pelos adultos da instituição. A formação pode acontecer desde o início do processo, mas, se você não está convencida(o) ou se precisa convencer sua equipe, passe pelos cinco primeiros passos primeiro. A formação do CEMSP recomeça, a partir do primeiro módulo, em janeiro de 2018. Se eu estivesse no seu lugar, deixaria a página do CEMSP como página inicial do seu navegador para ficar atento ao período de inscrições e formar-me ou formar minha equipe. 7. Estruture um grupo de estudos na instituição. Quando alguns profissionais da escola tiverem um pouco mais de conhecimento de Montessori – ou porque são formados, ou porque já estudam há mais tempo – ou mesmo quando a escola sentir que há disposição coletiva, é muito importante criar um grupo de estudos de Montessori. Nesse grupo, principalmente duas coisas devem acontecer: vocês devem ler os livros de Montessori e textos sobre Montessori, podem também assistir a vídeos, e devem ligar aquilo que aprendem na teoria com as observações que desenvolvem sobre as crianças. O blog do CEMSP traz bons textos. Em português, você pode usar também a Escola Maria e o Lar Montessori, também no YouTube. Se você está começando uma escola, ou planeja começar, esse manual também é útil. Em inglês, há muitos outros locais para estudar. O Montessori Guide é meu favorito, mas vale a pena explorar as páginas da American Montessori Society, da Association Montessori Internationale (incluindo o AMI Digital) e do National Center for Montessori Education in the Public Sector. Para estudar materiais, gosto do Info Montessori e o Montessori Commons. 8. Convide profissionais a qualquer momento. Uma prática muito valiosa é convidar profissionais de dentro e de fora da escola para observarem e opinarem sobre sua prática. Se um professor puder observar outro e oferecer suas percepções e sugestões, a sala ganha com isso. Se um colega puder ir à escola para observar e conversar com a equipe ou a direção, também há chances grandes de a escola ganhar pontos de vista valiosos sobre a prática. Isso é uma das vantagens do estágio exigido durante cursos de formação em Montessori pelos centros de formação mais sérios e exigentes, mas você não precisa parar no estágio. Pode continuar com o exercício ao longo de sua atividade. Uma das transformações mais belas que há é aquela de uma escola que acreditava fazer Montessori em uma que efetivamente faz Montessori. Muda tudo. O humor da equipe se altera, sua disposição para um bom trabalho aumenta, a satisfação dos profissionais e sua retenção na escola muda, e as famílias percebem a transformação em suas crianças. As crianças são as maiores beneficiadas, é claro. Seus olhos ganham brilho, sua atitude diante de desafios se transforma, elas se descobrem pacíficas e felizes. Por isso, seu desempenho acadêmico melhora também. O que ocorre quando a escola não confia na criança e em Montessori, é que passa a usar só pedaços de Montessori com as crianças, e preenche parte do dia com outras pedagogias e outras iniciativas. Quando isso acontece, o potencial da escola, da pedagogia e das crianças é afetado, e aí realmente as coisas dão menos certo, e a escola acredita que isso ocorre porque Montessori não é suficiente. Então, aumenta ainda mais os “adicionais” como aulas extracurriculares, um uso cada vez maior de papel e de atividades coletivas, também colocando muitos brinquedos e materiais não-montessorianos na sala. É um ciclo vicioso. Quando a escola retorna a Montessori, e recupera sua confiança na criança, chamo o processo de revitalização, porque é a vida que retorna. Aos poucos, os adicionais podem ser abandonados, e vemos as crianças cada vez melhores consigo e com o mundo, e nossa confiança nelas e em Montessori aumenta, encorajando-nos a abraçar Montessori como a única pedagogia da escola, e confiar nas crianças como as únicas capazes de nos mostrar o verdadeiro caminho da educação.
1 Comentário
Paige Geiger
20/6/2017 18:13:02
Obrigada, Gabriel. Achei muito importante a sua mensagem neste momento quando terminamos um semestre e tem muita reflexão dentro das escolas. Também eu vejo este ciclo vicioso nas salas de aula montessorianas. Achamos que mais material (réplicas ou cópias não necessárias em papel) vai oferecer mais para nossos alunos. Sim, oferece mais opções, mas não opções valiosas. São opções que distraem. Cada réplica de material tira a criança da possibilidade de repetir um material onde vai entrar cada vez mais profundamente no conceito que está desenvolvendo. Cada vez que começa um novo papel ou atividade começa de novo no superficial. Muitas atividades feitas no nivel superficial não ensinam, nem levam a criança até aquele momento de concentração profunda. Queremos primeiro esta concentração que talvez não vai produzir um monte de papeis, mas produzir um aluno capaz de pensar.
Responder
Deixe uma resposta. |
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
Categorias |