Ainda este ano, em uma conversa durante uma palestra, alguém disse, sobre Vida Prática: "Puxa! É muito legal! As meninas gostam mais, né? Mas é legal que tem coisas pros meninos também. Mas é muito legal, elas podem aprender as coisas!" - isso ou uma frase semelhante. Antes de demonizar a pessoa que falou a frase citada acima, pensemos: oferecemos atividades de costura para os meninos? Nosso kit de costura é cor-de-rosa? O que isso quer dizer para nós? Nós somos incansáveis nas apresentações de arranjos de flores para ambos os gêneros? Compreendemos melhor um menino que não se concentre do que uma garota? Permitimos mais os movimentos desastrados deles do que delas? O que esta pessoa pronunciou em voz alta é, em verdade, o que muitos professores e pais pensam da primeira vez que são apresentados à Vida Prática, e se não o dizem é porque vivemos em tempos de luta no que diz respeito ao discurso sobre gêneros. O que os tempos pedem, os meninos demonstram e as meninas exigem é uma profunda alteração em nossas ações e pensamentos no que diz respeito ao que ensinamos e ao que esperamos de nossos garotos. Quando eu tinha doze anos, e ainda estudava em Montessori, minha mãe fazia lindos bordados em ponto cruz. Uma amiga também fazia. Eu queria fazer. Em minha casa nada nunca nos foi imposto porque éramos garotos, e eu pude aprender a cuidar da casa, cozinhar, bordar, costurar um pouco, caligrafia artística, escrever poesia, yoga. Nunca ninguém me disse que porque eu era menino devia aprender futebol - ainda bem, eu fiz uma aula de futebol uma vez, e se não me arrependo é porque reconheço a importância do fracasso na vida. Bom, eu fiz um bordado em ponto cruz. Fiz dois, na verdade. Um foi uma toalhinha para essa minha amiga, que bordava, com o nome dela. O outro, mais desafiador, foi um mago vestido de azul, com uma longa barba branca. Eu não continuei, nunca mais fiz mais nada, não quis. Passou. Mas eu me lembro até hoje da conquista, da vitória, da sensação interior de sucesso. Eu guardei o mago e mostrei para as professoras e os professores, os parentes e os colegas: eu conseguia criar - copiar - arte em pano. Eu podia fazer coisas difíceis com as mãos. Em um vídeo, na página Montessori Guide, um garotinho de muito pouca idade faz um arranjo simples com uma flor, e enfeita uma mesa. Ele prepara, enche um pequeno vaso com água, seleciona uma flor, ajeita a flor no vaso, pega uma toalhinha plástica branca e circular, posiciona a toalha em uma estante e o arranjo sobre ela, bem no centro (ele se esforça para acertar o centro) e volta, contente, para a mesa, para fazer o próximo. Circula na internet uma fotografia de três garotos com bonecos nos braços, dando mamadeira para os brinquedos. A legenda diz algo como "Você não deixa seus filhos brincarem de boneca? Você tem medo de que eles se tornem... Bons pais?". Nó temos uma boneca em Montessori, e ela serve para as crianças lhe darem banho, numa pequena banheira. Mas nós também temos louça, costura, pintura, flores, faxina, culinária. Nós temos todo o universo para pequenos Donos de Casa, da Casa das Crianças. É de fundamental importância que saibamos: usar essa casa, tornarem-se donos da casa, é importante para todo mundo. Também para os meninos. Eles não devem ser apresentados à matemática e à linguagem mais rapidamente. Eles não devem ser mais incentivados que elas a subir em árvores e menos a polir antiguidades de prata. Não só porque eles e elas adoram tudo em intensidade semelhante, mas porque eles e elas precisam de tudo em intensidade semelhante. Eles não são, e não precisam ser, "mais agitados que elas". Eles não são, por natureza, e não precisam ser, por cultura, "mais desastrados, mesmo". Não. Eles podem ser exemplos de coordenação motora, senso estético e cuidado com o ambiente. Da mesma maneira que elas podem ser exemplos em escalada, salto, corrida e, claro, aritmética e raciocínio lógico. Funções Executivas, o tema de um texto recente aqui do CEMSP, existem em garotos e garotas. Desenvolvimento psicomotor também. Preocupação social tanto quanto. Senso estético, igual. Reconheçamos, todos nós: eles e elas podem as mesmas coisas, não há diferença de competência. Quando houver, que seja o Pedro, a Fabiana, o Felipe, a Clara, o Rafael, a Mariana, o Cristiano. Que não sejam os meninos e as meninas, que seja cada um. Que não agrupemos as crianças em grupos que excluem competências a priori. Que não os excluamos de nossas observações e não as eximamos de nossa análise. Que eles possam ser tudo o que podem ser, em todas as direções. Às vezes, para ela, é na escalada ou na manipulação da terra que o Equilíbrio Natural da Criança, a Normalização, a espera. Às vezes, para ele, o Equilíbrio está na trama de um ponto cruz, ou em uma pequena mancha de gordura em um prato que precisa ser lavado. A paz dela pode estar em uma experiência de química intrincada. A paz dele pode estar em duas margaridas e um ramo de pequenas folhas verdes arranjadas com beleza na penteadeira da área de Vida Prática. Que nós possamos, com nossos olhos clínios e amorosos, analíticos e devotados, abandonar as lentes de gênero que nos limitam o trabalho. Que nós possamos informar nossas famílias sobre isso, ajudando-os também a superar esses limites, derrubar muralhas que nos impedem, tão intimamente, de enxergarmos o brilho nos olhos de nossos meninos e nossas meninas quando eles fazem coisas que não esperamos. Vamos mais longe assim. Vamos mais longe olhando para cada humano pelo que ele ama. ---- Você vê mais esteriótipos de gênero acidentais na prática de Montessori? Você acha que há assunto para mais de um texto no tema? Comente aqui e vamos conversar sobre isso!
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Lembremo-nos dos estragos que resultaram do desejo de Freud de fazer de seu método uma Causa: a criação de uma geração de zumbis, repetidores hipnotizados de ladainhas e de fórmulas esotéricas tão empoladas quanto vazias, que se alimentam da carne dos que chegam mais ou menos entusiasmados para aprender e que serão, por sua vez, transformados em cadáveres insepultos e parcialmente comidos à procura de carne fresca. – LEITE e GOLDENBERG, Psicanálise Marginal in Revista Cult, Maio de 2015, p.30. Montessori foi um sucesso desde o começo. Da Clínica Ortofrênica da Universidade de Roma, Montessori foi capaz de se tornar celebridade em toda a Europa por educar crianças que se pensavam ineducáveis e ajudar essas crianças a terem um desempenho igual ou superior ao das crianças das escolas comuns de toda sua nação. Sua resposta à transformação de sua ciência em um fenômeno midiático do qual ela, e não as crianças ou suas descobertas, era a estrela, gerou nela uma só resposta, enviada por carta ao seu pai: o voto de desaparecer, para sempre, dos jornais. Nunca mais ninguém ouviria falar de Montessori, bem ou mal. Por dez anos, Montessori conseguiu se esconder de fato, e continuar pesquisando, avançando, melhorando. Então, em 1907, ela assistiu extasiada aos seus alunos que, com quatro anos de idade em uma Casa de Crianças mal preparada e mal mobiliada, aprenderam a escrever e saíram pichando paredes, mesas, pisos e até cascas grossas de pão. A imprensa ficou tão extasiada quanto Maria, e fez nascer, do método da pedagogia científica, o método Montessori.
Nossa educadora, por sua vez, fez outro voto: abandonar tudo e seguir a criança. Em ação, isso se traduziria pela saída de Montessori da Universidade de Roma alguns anos depois, e por suas viagens por todo o mundo para divulgar, ensinar e defender o que então se tornava a principal alternativa à educação tradicional no ocidente. Saudosa de seus cada vez mais raros momentos de pesquisa e reflexão, Montessori se torna uma ativista, uma benfeitora da humanidade, e uma defensora ardorosa da criança, cada vez mais enfática, cada vez com melhores insights, cada vez com melhor retórica. Para ela, o método ainda era ciência, para Montessori, o método da pedagogia científica foi ciência até o fim. Uma ciência não-cartesiana, é bem verdade, mas ciência ainda, rigorosa, precisa, perspicaz e, quase em tudo, acertada. Nesse meio tempo, muita gente soube de Montessori. As edições de seus livros se esgotavam tão logo eram lançadas, e os jornais que traziam reportagens sobre ela eram vendidos e precisavam, por vezes, de reimpressões. As cartas fluíam às centenas à sua mesa, em Roma, e às mesas de toda a imprensa, que falava de Montessori como se fala hoje, talvez, de alguém que descobrisse uma revolução na medicina, mais do que na educação. Acontece, porém, que Montessori esperava muito do gênero humano. Ela realmente acreditava que, com um pouco de bom senso e muita boa vontade, mais um treino básico em observação e o aprendizado do manuseio dos materiais, nós poderíamos continuar seu trabalho. A bem da verdade, conseguimos, um pouco, aos tropeços, qualquer coisa parecida – às vezes mais, às vezes menos – com o que Montessori dizia que acontecia em suas escolas. Mas há alguns padrões de aplicação de Montessori que se repetem e nos podem iluminar os caminhos, e vou tentar recuperar dois ou três deles bastante brevemente. Primeiro, é comum que em salas onde Montessori funciona, duas coisas aconteçam: ou há, na escola, um membro que conhece muito, esforça-se muito e estuda muito, conhece muito e pratica, ou praticou muito, e tem acesso a todos os outros membros para ajudar; ou há um professor que é como esse membro da equipe, mas não tem acesso a todos, então consegue ajudar muitíssimo as suas crianças, mas é limitado pela ineficiência da escola ou dos colegas. Em escolas onde Montessori não funciona, entretanto, temos também padrões, e esses podem ser mais seguros e nos elucidar melhor. Há duas percepções de Montessori bastante onipresentes, que levam ao mau funcionamento de qualquer coisa que se parece com o método, e é aplicada em salas de aula as mais diversas. A percepção de Montessori como milagre e a percepção de Montessori como espetáculo. Enxergar Montessori como milagre é pernicioso, porque intimamente, faz-nos acreditar que basta proceder de maneiras determinadas para que o resultado apareça. Acreditamos, dentro de nós, que dados os materiais corretos no lugar correto com a apresentação correta na idade correta, tudo de correto acontecerá então. Esquecemo-nos de que existe observação. Esquecemo-nos de que é necessário olhar a criança. E marcamos quantas vezes comeu, quantas vezes foi ao banheiro e com quais materiais trabalhou – em papel, em celulares, em tablets. Mas não olhamos a criança. Não sabemos se ela fez uma careta enquanto trabalhava. Não sabemos se ela passou o dia sem trabalhar olhando todos os colegas que trabalhavam com matemática. Ou se passou o mesmo dia sem trabalhar, na área externa da sala, olhando todas as atividades com água. Nós só sabemos que ela não trabalhou com nada. Ver Montessori como milagre é perigoso porque nos pegamos esperando o milagre funcionar. E quanto não funciona, crianças de pouca fé, é porque o método não é feito para todas as crianças, não é feito para essas. Imaginamos estar aplicando Montessori. Quando, de fato, não é possível aplicar Montessori. Só é possível ser Montessori, levar a cabo, talvez, um método de observação da criança, usar os meios de desenvolvimento criados ou melhorados por Montessori, olhar a criança e buscar ajuda-la em seu caminho para uma vida equilibrada. Infelizmente, na obra de Maria Montessori, é fácil encontrar passagens em que Montessori dá a entender seu método como milagre. Isso se deve, não tenho dúvidas, primeiro ao maravilhamento de Montessori diante das crianças, e segundo, à humildade de Montessori exercitada ao grau da isenção total em relação aos resultados maravilhosos de sua ciência nova. Fato é, entretanto, que quando saltamos da ideia do milagre para a aplicação real, esquecendo a observação, o esforço e o raciocínio, não vamos longe e, na maior parte das vezes, culpamos as crianças e o mundo de hoje – este último às vezes merecidamente, é verdade, mas devemos lembrar que Montessori pode funcionar mesmo assim. A segunda percepção de Montessori que dificulta uma utilização melhor dos princípios desenvolvidos por Maria é a ideia de que Montessori é um espetáculo. Essa percepção nos faz querer ver o incrível, o inacreditável e o imprevisto o tempo todo. Online, se vê com facilidade quem deseje a explosão da escrita em suas escolas, ainda que Montessori tenha dito que a explosão da escrita não deve acontecer em escolas que se preparam para o aprendizado autônomo da escrita pela criança. As fotografias, os depoimentos e os vídeos, todos funcionam pela ideia do espetáculo, e nós desejamos que nossas salas sejam espetaculares, no mau sentido do termo, como o são os vídeos e as histórias que ouvimos e lemos na internet. Haverá, é certo, espetáculos. Haverá, também, de certo, momentos não-espetaculares. Momentos comuns, momentos em que se progride normalmente. Momentos em que as dificuldades existem e exigem que se lide com elas, momentos em que uma criança não terá ensaiado antes de vir para a escola, e não poderá nos impressionar como gostaríamos que fizesse. Esquecer de que Montessori é ciência, e a ciência é quieta, concentrada, lenta, paulatina, e exige grande esforço de raciocínio é fácil quando encontramos uma fórmula que funciona. Numa rápida digressão, não é por menos que o mundo se manteve acreditando que a Terra era chata, que Newton estava correto ou que a evolução das espécies não acontece por mutação. Uma fórmula que funciona salva tempo, salva esforço, nos permite pensar em outras coisas. O resultado maior da adoção de Montessori como fórmula que funciona é que paramos de pensar no método e passamos a pensar em materiais. Hoje, nossas salas têm muito mais materiais do que havia nas salas de Montessori, e acreditamos que aplicar exatamente o mesmo método com muito mais materiais em um mundo absolutamente diverso deveria funcionar, provocar o milagre e nos fascinar com o espetáculo. O fato de que Montessori, ainda assim, funcione em grande parte dos casos, só nos convence mais de que estamos corretos – e talvez estejamos. Abandonar, ainda assim, as noções de milagre e espetáculo é essencial para que possamos pensar na ciência. É só assim que poderemos fazer o método Montessori existir, espalhar-se e frutificar em nosso novo tempo. Precisamos dar um passo para trás, parar de agir, e pensar. Há hoje impedimentos a Montessori, dificuldades a Montessori, que não havia há cem anos e, se durante sua vida, Montessori ela mesma transformou procedimentos de sala de aula, mudou sua concepção acerca de temas como o silêncio da criança e alterou pontos importantes de seu trabalho, além de expandi-lo para as crianças para além de seis anos e para aquém de três, então é nosso papel continuar seu trabalho. Se não quisermos, pouco a pouco, tornar-nos uma geração de zumbis, repetidores hipnotizados de ladainhas e de fórmulas esotéricas tão empoladas quanto vazias, precisaremos reaver o método – como diz Edimara de Lima, pensar como Montessori pensava – precisaremos reaver o raciocínio, para pensarmos nossas salas de aula, nossas reflexões, nossas disseminações, nossas formações. Retomar a reflexão se faz mais essencial conforme o mundo se transforma. Nosso trabalho, como o de Montessori a partir de 1913, mais ou menos, é transformar o mundo. Mas é também, e hoje, parece, ainda mais, aquele que Montessori exerceu até 1913: compreendê-lo. Em nosso texto anterior, trabalhamos em cima de perguntas feitas por quem escuta que em Montessori se educa sem provas. Uma outra pergunta comum é: “Tudo bem, mas como é que vocês fazem para garantir que as crianças estão aprendendo?” e também: “Elas aprendem tanto quanto na escola tradicional?”.
Começando pela segunda pergunta, a resposta é sim. Uma criança no fim do Ensino Fundamental I de uma boa escola montessoriana sabe muito mais do que o habitual. Uma criança no final da pré-escola montessoriana também. A quantidade de conhecimentos culturais, científicos, linguísticos e históricos a que essas crianças são expostas de forma agradável e de acordo com seu momento de desenvolvimento é incrível, e o pensamento lógico-matemático, do qual derivará o pensamento científico, é estimulado desde muito cedo na vida das crianças. Por isso, elas aprendem muito, com facilidade e, pode-se dizer, sem sequer perceberem. Para garantir que as crianças estão aprendendo, nós temos duas ferramentas muito úteis. Primeiro, uma conexão profunda entre os materiais e uma sequência na utilização destes. A destreza na utilização de um material nos mostra que a criança já compreendeu o que devia aprender ali, e o fato de uma criança escolher muito aquele material por um período e depois deixar de escolhê-lo deixa claro para nós que ela passou por um momento de trabalho intenso para adquirir uma habilidade, e depois de adquiri-la, foi em frente para o próximo trabalho interessante. Como os materiais contam com controles de erro internos, em sua maior parte, nós não precisamos corrigir as crianças, e nos basta observar como ela lida com os erros que comete e quando finalmente os supera. A outra ferramenta extremamente útil em nosso trabalho é a observação científica. Nós observamos as crianças de maneira sistemática e controlada, e assim sabemos com um grau relativamente alto de exatidão do que é que elas precisam em um momento de seu desenvolvimento. Como trabalhamos com as crianças de forma individual, podemos observar e atender de verdade as necessidades de cada criança. O planejamento de uma escola montessoriana não é coletivo. Não é feito pelo tempo do professor (com atividades de 15 ou 20 minutos separadas por intervalos de 5 minutos e o lanche), mas pelo tempo do aluno, com apresentações, abstenções de interferência, espera, observação e respeito. Conforme a criança progride ao longo do Ensino Fundamental I, II e Ensino Médio, nosso trabalho ganha alternativas. Além do empenho com os materiais concretos, a criança agora dará sua atenção a operações mais e mais abstratas, assim como a trabalhos maiores, mais longos e com mais participantes. O professor, então, além de observar, precisa ser algumas vezes um orientador de trabalho, e com ainda mais frequência conforme a criança cresce, um personagem sempre aberto ao debate, à conversa, à discussão franca e honesta. Por meio da observação acrescida do exame minucioso do trabalho produzido em parceria com a criança, assim como do debate e da conversa que se sigam sempre a uma investigação do aluno, o professor percebe, individualmente, os progressos e as necessidades de cada criança, e pode cuidar de cada um de maneira única e atenciosa. Em um resumo excessivamente sucinto, é por isso que, em Montessori, conseguimos educar sem provas sempre. Montessori não acreditava nas provas para nenhum nível do ensino escolar e, hoje, cada vez mais escolas montessorianas se esforçam por abolir, pouco a pouco, todo vestígio de prova nas instituições. Na educação comum, entretanto, as provas ainda são a pedra fundamental de todo o processo educacional. Isso pode ser discutido de forma conceitual, mas é ainda mais interessante que seja pensado de forma empírica. É aceitável para muitas escolas que se insira um material concreto na sala, que a disposição das carteiras se altere, que a divisão por faixas etárias mude, que haja um horário mais flexível. Ainda assim, é inadmissível para quase todas que as provas sejam abolidas de uma vez por todas. É interessante constatar que se as provas não forem abolidas, na verdade se altera muito pouco. O material didático concreto, a disposição das carteiras, o horário, as faixas etárias... tudo isso pode fazer com que as crianças aprendam mais e melhor. Pode tornar a escola, ainda sob o modelo das linhas de montagem, mais eficiente. Pode fazer com que mais resultado seja possível em menos tempo. Mas nada disso altera a noção fundamental de que há metas muito precisas com prazos muito precisos, e nada disso altera a noção fundamental de que se pode avaliar o aprendizado de uma criança em um período de quarenta minutos em que uma criança é proibida de ajudar seus amigos, contar com a ajuda deles, e em que deve temer o professor se consultar o acervo infinito de sabedoria da humanidade em livros, revistas, anotações ou páginas virtuais. Sucintamente, a reorganização do processo de ensino não é a alteração do processo de educação. Este exige que não haja provas – exige que se altere a pedra fundamental e se construa tudo de novo. Por sorte, temos Montessori como uma excelente planta para a construção, e todo o material disponível para isso. Em uma escola comum, e mesmo em escolas que buscam a aplicação genuína de Montessori, é possível trocar as provas por outras formas de avaliação. Em escolas montessorianas, a sequência de materiais com controle de erro, aliada a uma cuidadosa observação científica e muita conversa, debate e avaliação contínua do trabalho individual das crianças são nossas melhores alternativas. Para escolas não-montessorianas, damos algumas opções de avaliação, e pedimos que você compartilhe conosco o que conseguiu desenvolver em suas escolas. Avaliação Continuada por Atividades: é possível dar atividades para as crianças e pedir que as realizem. Estruturando a escola para que as crianças possam aprender com essas tarefas, em leitura, vídeos, debates, e assim diminuindo o tempo de aula e aumentando o tempo de estudo. Os prazos continuam a existir, mas as crianças trabalham mais ativamente e aprendem muito mais. Avaliação Continuada por Projetos de Pesquisa: nesse caso, as atividades seriam muito mais longas, e poderiam acontecer em casa, ao longo de períodos extensos de tempo. Para isso funcionar, pode ser importante que várias disciplinas sejam unidas em um projeto, para que a criança não fique muito sobrecarregada de trabalhos, já que não se mexe na intensidade de aulas da escola e no tempo ocupado por elas. Trabalho por Projetos: A pedagogia de projetos é amplamente reconhecida e há muito escrito sobre ela. É uma alternativa brilhante, desde que o projeto não seja menos sério ou menos importante do que a prova. Se há nota, é necessário pensar no peso que o projeto terá, ou que a avaliação continuada terá. E esse peso não pode ser menor que o da prova. Caso contrário, a prova continua sendo a avaliação maior, e todos os problemas da prova persistem. Provas Individuais: Pensar na prova de acordo com o progresso de cada aluno pode funcionar junto com a avaliação continuada por atividades, com provas feitas para determinados momentos e aplicadas quando a criança alcança esse momento do aprendizado. Pode-se permitir consulta. Assim, não se conserta a questão da cooperação, mas se resolve a questão dos prazos e da consulta. Construção de Teorias por Estudo Independente: Em lugar de aulas, as crianças podem ler muito, e tirar dúvidas e discutir o tempo todo. Isso exige um professor polivalente em sala de aula de grande competência. Assim, as crianças constroem teorias e com base nessas teorias podem fazer até mesmo Provas Individuais depois. É claro que não propomos aqui que você altere todo o funcionamento de sua escola com base neste texto. É ideia é que ele funcione como um catalizador. A partir dele você pode pensar, acelerar as coisas, ler muito mais em muitos lugares diferentes, reestruturar a escola, formar a equipe e transformar o trabalho. A ideia é que ele ajude você a dar o primeiro passo, ou a lembrar de uma vontade antiga de fazer diferente e retomar aquele projeto antigo de educação incrível que deu origem à escola. Vamos juntos, mudar a educação no Brasil é tarefa de todos nós, conjuntamente. Eu gostaria de terminar este texto com uma inspiradora frase de Maria Montessori em Formação do Homem: “Em toda parte se deveria dar esse passo decisivo: aproveitar todos os esforços daqueles que, em diversas tentativas, têm procurado educar a infância”. Quando se sugere a educação montessoriana como excelente alternativa à educação comum, há um questionamento recorrente e importante: O que acontecerá com esta criança quando, um dia, ela for obrigada a deixar a escola montessoriana para entrar no...mundo real? Há uma importância nessa pergunta, um sentido latente nela, que merece ser conversado à exaustão. E a questão que se coloca é: De que mundo real estamos falando?.
Há muitos mundos reais, mas entraríamos aí nos ramos das filosofias de final de semana. Quando se faz essa pergunta, há três mundos reais a que se refere a frase: um é a escola comum, o segundo é o vestibular e o terceiro é o mercado de trabalho comum. Para cada um destes há um ponto a discutir muito brevemente em parágrafos distintos abaixo. É uma pena, mas um dia a criança precisará ir para a escola comum. Isso terá de acontecer, no Brasil, porque ainda não temos Ensino Médio Montessori. É um sonho que vale a pena sonhar, mas ainda não é nossa realidade. E quando a criança for para a escola comum, ela se sairá muito, muito bem. E por “muito muito bem” eu me refiro às notas dela. Ela terá notas excelentes. O motivo principal é o desenvolvimento incrível das Funções Executivas dela ao longo dos primeiros anos de vida, na sala das crianças de três a seis anos. Ela será, então, concentrada, terá um ritmo de trabalho muito bom, saberá escolher com bons critérios e terá um comportamento social elogiável. Isso é resultado do desenvolvimento incrível das Funções Executivas do cérebro, que é resultado das atividades de Vida Prática na sala de aula montessoriana. Mas mais do que excelentes notas e observações elogiosas dos professores, essa criança se sairá muito, muito bem, porque ela saberá que há outras coisas além da escola, há um mundo além da escola, e ela terá imenso prazer em descobrir esse mundo. Se você é pai ou mãe de uma criança que estudou em Montessori até os seis anos, não permita que a escola comum apague a chama do aprendizado e da inteligência em sua criança. Em casa, em seu tempo livre e na rua, o tempo todo converse com ela sobre coisas interessantes, leia livros interessantes, até mesmo assista coisas interessantes na televisão. E se você é professor de uma escola comum, e recebeu alunos de uma escola montessoriana, tenha tolerância com eles, e procure se divertir com eles. Eles vão fazer perguntas desconcertantes, difíceis, constrangedoras, desafiadoras... interessantes. Eles vão questionar muito, muita coisa. E no mundo real que sonhamos, todos nós questionaríamos muitas coisas: por que há quem tenha água e quem não tenha? Por que 1% da população do mundo tem o mesmo dinheiro de 3,5 bilhões de pessoas mais pobres? Por que alguns países fomentam guerras e por que eles não são punidos por isso? É esse o adulto que sonhamos, para o mundo real que queremos. A criança merece espaço para desabrochar. Sobre o vestibular a conversa é muito mais fácil. O vestibular é um detalhe, importante, mas um detalhe, no caminho de uma criança educada em Montessori. Quanto mais anos ela passou em Montessori, mais isso é verdade. Ensinamos mais, e não menos, do que a escola comum. O grau de exigência de uma criança sobre si mesma, quando deixada em liberdade em um ambiente preparado, é muito mais alto do que o grau de exigência que um adulto saudável imporia sobre ela. Ao longo da vida escolar a criança deseja aprender, deseja explorar e conhecer mais. Em uma escola Montessori, permite-se isso, dá-se todo o apoio para que isso aconteça. Quando chega a hora do vestibular, o adolescente saber ler bem, escrever bem, e aprendeu ao longo de sua vida muito daquilo que se pedirá dele. Talvez seja necessário um treinamento específico para a prova, porque ela é artificial. Mas esse treinamento não precisa durar os quatorze anos da educação da criança, pode durar alguns meses somente. No mundo do trabalho o adulto precisa contar com habilidades que desenvolveu ao longo da vida. É verdade que um excelente conhecimento de mundo – geográfico, linguístico, histórico, matemático, físico, social – é sempre positivo, sempre de grande ajuda, e não é por menos que o conteúdo curricular de uma escola montessoriana é denso, profundo e longo. Mas o adulto precisará contar ainda mais com suas habilidades de socialização, raciocínio lógico, raciocínio estratégico, planejamento temporal, resiliência, humor, tranquilidade, criatividade, inovação. Brené Brown em uma de suas palestras diz que todos querem que se fale de criatividade e inovação, mas ninguém quer que se fale de vulnerabilidade. A vulnerabilidade é onde nasce a criatividade e a inovação. Em uma paráfrase, se poderia dizer: Todos queremos adultos inovadores, rápidos no raciocínio, bem humorados, criativos. Todos queremos adultos questionadores, cidadãos, agentes de mudança, cheios de iniciativa e vontade. Todos queremos adultos com olhos brilhantes de fascínio pelo mundo e a vida, com conversas interessantes e valores pessoais dignos e admiráveis. Mas não queremos conversar sobre a educação da infância. E é na educação da infância que se encontra o local de nascimento de todas essas características. Nenhuma dessas características nascerá de provas bimestrais, mensais, semanais ou de um vestibular bem respondido. Elas nascerão de uma infância livre em um ambiente cuidadosamente pensado para a criança, com um adulto cuja maior preocupação é garantir todas as condições (inclusive em seu próprio comportamento) para o desenvolvimento perfeito da criança com quem trabalha. Essas características vão nascer de muitos anos de esforço intenso da criança para formar a si mesma. Em nosso próximo texto, abordaremos as formas por meio das quais Montessori é um método que permite a educação sem provas, e vamos sugerir algumas reflexões mesmo para aqueles que não podem, por questões estruturais, abrir mão das provas imediatamente na escola tradicional. Até lá! Hoje há muita informação sobre Montessori em português. Se dominamos mais uma língua, então encontramos mais incontáveis fontes sobre o método, sua aplicação, grupos de debate, páginas de venda de materiais concretos ou para impressão. Hoje é possível aprender muito sem nunca ter lido uma só linha da obra de Maria Montessori. Os cursos de formação em Montessori no Brasil transmitem muita informação sobre a teoria, a prática e a filosofia de Montessori, e exigem que se leia o indispensável, é verdade, vislumbrando um tempo em que os alunos lerão muito mais do que o exigido. Em tempos assim, nos quais há álbuns de apresentações prontos na internet, vídeos de apresentações de materiais e de palestras de educadores montessorianos no mundo todo, publicações em blogs sobre a disciplina na sala montessoriana e a conduta do adulto na escola e mesmo em casa, milhares de pessoas reunidas em fóruns online para debater questões tão pequenas quanto “Onde vocês preferem comprar os tapetes da sala de aula?” e tão imensas quanto “Alguém tem indicações de leitura sobre o equilíbrio entre a necessidade de controle do professore e a necessidade de liberdade da criança?” e discussões de casos específicos de crianças que precisam de uma ajuda que nós ainda não aprendemos a dar... Nesse tempo em que Montessori se torna um movimento mais do que nunca, e se move e se modifica, e se transforma e se adapta, e se redescobre de volta ao original, por que é tão importante lermos Maria Montessori? O método de Montessori foi desenvolvido com base em anos de observação científica, cuidadosa, do comportamento da criança e de seu desenvolvimento no ambiente preparado. Foi erguido pouco a pouco, para satisfazer todas as necessidades da criança pequena, intelectualmente, mas também emocionalmente, socialmente e psicologicamente. Ele é um todo completo, e não exige, a rigor, modificação alguma para dar suporte total ao desenvolvimento pleno do indivíduo humano. De fato, as descobertas e técnicas de Montessori, sua eficiência e o grau de ajuda que elas oferecem à criança pequena, vêm sendo repetidamente comprovadas por pesquisas científicas não vinculadas ao método ou à filosofia de Montessori – isso você pode verificar em Montessori: The Science Behind the Genius e em um pequeno texto meu, simples e breve, que traz algumas correspondências científicas interessantes, aqui. Maria Montessori, por sua vez, insistia que se lessem os livros dela e se fizessem os treinamentos dela. Ela sabia que, tendo conduzido praticamente sozinha quase toda a pesquisa que levou à geração e ao amadurecimento do método da Pedagogia Científica, só ela poderia dizer de fato o que descobrira, como descobrira, e quais as implicações disso para a vida da criança auxiliada pelo método. Ela, sabemos, resumia sucintamente sua vida intelectual em “Eu descobri a criança”. Neste texto, a ideia é dar a você motivos para ler três obras de Montessori. O livro Mente Absorvente, o A Criança e o Pedagogia Científica. Junto às razões expostas, estarão os índices dos livros em sua tradução para o português, assim você pode escolher por onde começar de forma mais consciente. Em Mente Absorvente, Maria Montessori, pela primeira vez, expõe sua teoria completa sobre a formação da mente da criança. O livro foi escrito no final da vida dela, como uma coletânea das palestras que ministrou durante sua estada na Índia, ao longo da Segunda Guerra Mundial. O livro tem capítulos como “Os Períodos do Crescimento”, “Embriologia e Comportamento”, “Os Primeiros Dias de Vida”, “Alguns Pesamentos sobre a Linguagem” e “Erros e Suas Correções”, e termina com capítulos sobre disciplina e, o último, sobre amor. É uma obra magnífica de muitos pontos de vista. É neste livro que Montessori expõe uma das ideias-base de sua ciência: a noção da mente absorvente como a chave que permite à criança apreender o mundo e se formar a partir dele. Aqui, Montessori nos explica: “A criança absorve o conhecimento diretamente em sua vida psíquica [...] as impressões não somente entram em sua mente, elas a formam”, e defende: “Essa é a perspectiva verdadeira na qual devemos enxergar a criança. É essa sua importância. Ela torna tudo possível. Sobre o seu trabalho se ergue a civilização. É por isso que devemos oferecer à criança a ajuda de que precisa, e estar a seu serviço, para que não precise trabalhar sozinha”. Tendo escrito o livro ao fim da vida, é nele que Montessori nos entrega em mãos a responsabilidade pela revolução que ela sempre ansiou por ver completa. O livro A Criança é muito mais suave e fluido. Mas que não nos enganemos, ele traz tesouros. Em sua versão original, o título era “O Segredo da Infância” e nele Montessori conjuga aquilo de sua teoria psicológica que já havia sido completado até 1936 com observações sobre os aspectos menos materiais do método Montessori. Entre os aspectos psicológicos nós encontramos “O Recém-Nascido”, “A Inteligência”, “As Delicadas Estruturas Psíquicas” e “Os Conflitos Durante o Desenvolvimento”, enquanto que entre os aspectos imateriais do método achamos “A Repetição do Exercício”, “Livre Escolha”, “Prêmios e Castigos” e “O Silêncio”. Outro ponto interessante do livro é a sequência de dez capítulos nos quais Montessori trata de traços do comportamento infantil que não são naturais da criança e surgem por inadequações no ambiente ou no comportamento do adulto para com ela – ela também oferece soluções. O final da obra é dedicado a reflexões sobre os conflitos entre o adulto e a criança, as diferentes características do adulto e da criança e a conscientizações sobre os direitos da criança e a missão dos pais. Em A Criança encontramos passagens belas como “Assim que as crianças encontram algo interessante, abandonam a instabilidade e começam a se concentrar.” e, ainda sobre as crianças “Elas não nos compreendem, não conseguem se defender de nós, e aceitam tudo o que lhes dizemos. Elas não só aceitam absuso, mas se sentem culpadas sempre que nós as culpamos.” Sobre o ambiente, Montessori diz aqui: “O primeiro objetivo do ambiente preparado é, tanto quanto possível, tornar a criança em crescimento independente do adulto.” Já o livro Pedagogia Científica¹ destoa bastante da tônica dos dois anteriores. É um livro pedagógico por excelência, e trata do método da Pedagogia Científica como aplicado às crianças de três a seis anos. Essa reedição foi feita também no fim da vida de Montessori e representa, por isso, a síntese de uma vida inteira de trabalho e pesquisa. Em Pedagogia Científica nós temos as descrições totais das características do ambiente da criança, a descrição, em muitos casos pormenorizada, de apresentações dos materiais montessorianos segundo sua criadora, e uma sequência de apresentações também detalhada. Encontramos reflexões sobre a escrita, a aritmética, o desenho, a arte, a música e a natureza na vida da criança. Há ainda um começo do livro dedicado à história do método e a considerações críticas sobre a educação tradicional. O livro, muito bem lido, é um treinamento em si mesmo e traz importantes chaves para complementar os cursos de treinamento de professores montessorianos. É um livro de cabeceira para todos nós e deve estar presente em nossas salas de aula para que, em caso de dúvida, possamos recorrer a quem criou tudo aquilo que fazemos todos os dias. São de Pedagogia Científica passagens famosas de Montessori, como, sobre o professor, “Resumidamente, o principal dever da professora na escola pode ser descrito assim: Ela deve explicar o uso do material. Ela é a principal conexão entre o material, que são os objetos, e a criança. É um dever simples, modesto, e entretanto é tão mais delicado do que aquele encontrado nas antigas escolas, onde o material somente ajuda a criança a compreender a mente da professora, que passa adiante suas próprias ideias à criança, que por sua vez deve recebê-las”, sobre o ambiente, lemos que “O método de observação há de fundamentar-se sobre uma só base: a liberdade de expressão que permite às crianças relar-nos suas qualidades e necessidades, que permaneceriam ocultas ou recalcadas num ambiente adverso à atividade espontânea” e, ainda, sobre o material: “Os meios destinados a auxiliar a criança a pôr ordem em seu espírito e facilitar-lhe a compreensão das inúmeras coisas que a envolvem deverão ser limitados ao mínimo necessário para poupar suas forças e fazê-la avançar com segurança pelo árduo caminho do desenvolvimento”. Quando lemos Maria Montessori temos incontáveis surpresas, descobrimos que ainda guardamos em nós preconceitos contra a criança que contávamos já há muito superados. Ler Maria Montessori é fazer uma visita à mente de uma das mentes mais geniais da Educação – quiçá a mais genial - e descobrir novos continentes a todo momento. E mais: maneiras belíssimas e corretas de levar as crianças para passearem conosco por esse mundo novo, cheio de milagres. Qual o seu livro favorito de Montessori? Por que ele é seu favorito? Compartilhe conosco a citação de que você mais gosta, ou o trecho que mais lhe ensina agora, ou até hoje! Vamos manter a conversa sobre a obra de Montessori viva e vibrante!
__ ¹ - Vale a pena mencionar que o livro Pedagogia Científica não é a tradução do livro Il Metodo della Pedagogia Scientifica, de Montessori, mas sim de La Scoperta del Bambino, este sendo uma quinta edição absolutamente transformada daquele primeiro livro. Montessori desenvolveu o método da Pedagogia Científica há mais de um século. Terminou de desenvolvê-lo há mais de meio. Ela escreveu obras importantes no fim da vida, é verdade. Mas mesmo assim as suas publicações mais relevantes já passaram dos sessenta anos. Ela trabalhava com materiais de madeira, tinha uma forma de pensar que flertava com o positivismo do século XIX, e desenvolveu boa parte de seu trabalho durante as maiores guerras que o mundo já viu. Personagens tão históricas quanto Freud e Gandhi trocaram palavras e ideias com ela, e ela teve influência sobre nomes importantes da pedagogia como Vigotsky e Piaget.
Mas depois de Vigotsky e Piaget, depois de Paulo Freire, José Pacheco, Emilia Ferreiro e Reggio, depois de Freud, depois de Klein, depois de Spielrein, Neil, depois de tanta gente. Depois da educação digital, dos tablets, das lousas interativas, de Khan Academy e de aplicativos educacionais de toda sorte, depois do Skype e do Google Earth. Por que Montessori, ainda? A pergunta é válida. Ouso um pouco e cogito que Montessori, com sua humildade sem fim, se faria a mesma pergunta. Por que nós, do método, do movimento, quase de um estilo de vida Montessori, estamos em Montessori, ainda? Por que é que Montessori, ainda, tem o que nos dizer? Por que é que ela nos fala cada vez mais? A resposta que segue, é claro, não poderia ser definitiva. Ela é pessoal, é fruto de uma experiência de vida maravilhosa, e é fruto de ciência também. É fruto de bate-papo com famílias e profissionais e é fruto de leitura comparativa de neurociência, religião e um pouquinho de filosofia pós-moderna. Mas mais que tudo isso, é uma resposta emocional. Tendo sido aluno de uma escola montessoriana por quatorze anos, e tendo um irmão que foi aluno em Montessori por quinze, sem provas, sem lição de casa, sem aula – estudando, trabalhando, pensando e discutindo todos os dias – algumas coisas são claras para mim. Não há formação regular que nos faça mais concentrados e sistêmicos em nosso pensamento. Concentrados no sentido cerebral e neurológico do termo. As funções executivas em nosso córtex pré-frontal se desenvolvem muito, muito bem em Montessori, e a capacidade de concentração de uma criança que vive com Vida Prática é quantitativa e qualitativamente diferente da capacidade de concentração de uma criança que não tenha a mesma oportunidade. Sistêmicos no sentido que se depreende do filme Ponto de Mutação (que você encontra legendado no YouTube, e vale a pena ver). No sentido de perceber que não dá para fazer uma coisa certa, melhorar um aspecto do mundo, e esperar que o resto melhore sozinho. É necessário prestar atenção em tudo, o tempo todo. Ligar todas as coisas com todas as outras coisas, sem descanso. E é necessário não esquecer que uma das ligações deve ser de nós mesmos com os outros, e com o Todo. Isso é o resultado de um outro aspecto de Montessori, que foi chamado por ela de Papel Cósmico, é uma das decorrências da Educação Cósmica, a noção de que tudo no universo tem seu papel, inclusive o Humano. Inclusive você, e eu. Há alguns anos foi publicada uma gema bibliográfica preciosa. Angeline Lillard escreveu Montessori: The Science Behind the Genius. Infelizmente ainda é um livro sem tradução para o português. Na obra, Lillard demonstra com um imenso, longo e acadêmico elenco de estudos científicos diversos, a eficácia de oito princípios do método Montessori, selecionados por ela: (1) Movimento e cognição são profundamente ligados; (2) o aprendizado melhora quando o aluno se sente no controle; (3) as pessoas aprendem melhor quando se interessam pelo que aprendem; (4) dar prêmios aos alunos interfere no aprendizado; (5) colaboração com colegas contribui para o aprendizado; (6) o aprendizado é mais efetivo quando se situa em contextos significativos; (7) os professores devem encontrar um equilíbrio entre serem autoritários e serem permissivos demais; (8) as crianças aprendem melhor em ambientes organizados. Isso, somado aos estudos de Steve Hughes e Adele Diamond, ambos demonstrando o profundo impacto de uma educação montessoriana sobre o desenvolvimento das Funções Executivas, basta para comprovar a eficácia de Montessori para o desenvolvimento humano do ponto de vista científico. Mas a ciência é só um aspecto por meio do qual se pode compreender por que Montessori, ainda. Conversando com profissionais da AMAES – a Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo, e assistindo a uma palestra ministrada por duas das excelentes profissionais da instituição, eu pude me emocionar repetidamente com os resultados do tratamento de crianças autistas com Montessori. E aqui eu não falo do material montessoriano, que também é usado. Falo da forma de agir, da ausência de prêmios e de castigos de qualquer sorte, do ambiente preparado para cada criança para que ela possa ser livre ali, da abstenção de interferência na concentração de uma criança que nos quarenta minutos do atendimento busca sucesso em um trabalho. Eu falo de resultados na coordenação motora (grossa e fina) de crianças e adolescentes, falo de resultados no controle do humor e das reações, do contato visual ou verbal com outras pessoas. Falo da alegria de se perceber gente e de ser percebido gente. Gente. Mesmo. Com respeito. Com reverência. Com precisão profissional. Ouvindo palestras sobre dislexia ministradas por uma das maiores pesquisadoras do assunto no Brasil, precisei convidá-la para conhecer alguns materiais montessorianos, que depois ela disse serem usados no trabalho com crianças com dislexia o tempo todo, com resultados excelentes. Eu sabia dos resultados. Nós já havíamos conseguido esses resultados em escolas. Ela também os conseguia no laboratório e no consultório. Mas não sabia que eram materiais montessorianos. Sabia que eram portas quase sem erro para o sucesso com essas crianças. Quando escuto falar na disciplina positiva, escuto falar em Montessori. Quando escuto falar em atenção a cada criança, escuto falar na observação de Montessori. Quando escuto falar no respeito pelas diferenças de cada aluno, de novo escuto falar em Montessori, que nos mandava lançar um raio de luz sobre a vida de cada criança, com a apresentação do trabalho certo na hora certa, e seguir em frente. Quando escuto falar que a criança é a principal peça na construção de um futuro melhor, escuto Montessori chamar os pequenos pelo nobre título de Construtores da Humanidade. E quando escuto falarem de educação financeira para adolescentes, escuto Montessori dizer que os adolescentes são Os Filhos da Terra e que devem conquistar independência social, por meio também de uma educação financeira muito mais complexa e completa do que aquela que se faz hoje, em geral. Quando vejo os olhos de uma criança brilharem ao amassar uma folha seca, vejo nesses olhos o reflexo dos olhos clínicos de Montessori, observando a reação de cada criança a cada estímulo do ambiente. Quando vejo uma criança tranquila em uma sala com poucos e bons objetos, leio no ar suas linhas sobre não confundir a criança com coisas demais. Quando sinto-me tentado a interferir no trabalho ou na interação de uma criança com o mundo, sinto minhas mãos bem seguras às minhas costas, pelos conselhos de uma diretora querida que dizia a nós: “mãos nas costas”, quando víamos um ser vivo viver em paz – um coelho, um pato, um peixe. As lágrimas que me correm ao falar das mãos, e ao enxergar a arte que as mãos podem fazer, refletem as linhas de Montessori sobre as mãos serem os instrumentos da inteligência humana. Os suspiros que me saem quando escuto alguém falar bem baixinho e respeitosamente com uma criança são suspiros de alívio em um mundo cheio de violência contra os seres mais nobres da humanidade. Um mundo no qual os Acusados de Montessori passeiam inconscientes de seus erros para com a infância. Lillard escreveu sobre Montessori e Consciência, e disse que as práticas de Consciência diversas espelham as práticas de Montessori. Adele Diamond chamou os exercícios de movimento de Meditação Caminhando. O Jogo do Silêncio tem aberto, para adultos, novas fronteiras no conhecimento de si mesmos. E Montessori está presente onde queria estar: na Natureza Humana. Na compreensão do Humano. Montessori ainda importa hoje. E importa mais do que antes. Importa mais do que nunca. E menos do que importará daqui uns cinquenta anos. Um sapiente pesquisador da Universidade de Virgínia disse uma vez que “Montessori está muito à frente da ciência cognitiva. Mas devagar, estamos chegando lá”. Nós vamos chegar, e ela vai ser ainda mais pertinente do que é hoje. Montessori, ainda, porque é ela quem nos ensina a olhar a criança pelo brilho dos olhos. A avaliar o progresso pelo movimento dos dedos, em paralelo à careta ou ao sorriso do rosto. A descobrir o aprendizado pelo silêncio e pela manifestação espontânea. É ela que nos ensina a sentar e observar a liberdade. A confiar. Na criança. E desconfiar. De nossos preconceitos sobre a criança. É ela que nos ensina a utilizar as ferramentas cada vez mais modernas para ensinar crianças a … Não. É ela que nos ensina a ajudar a vida. Há mais de cem anos, Montessori apostou que o século XX seria o século da criança. Não foi. Ou talvez tenha sido. Foi o século da Descoberta da Criança, com certeza. Mas o castelo que Montessori propõe em Mente Absorvente, a revolução a que ela nos chama, ainda está por fazer e construir. As pedras continuam aí, cada vez melhor lapidadas, cada vez mais firmes e confiáveis. Haverá o dia em que a revolução terá sido feita. Em que os olhos de todas as crianças poderão brilhar. Por enquanto, Montessori, ainda. - Este texto é muito pessoal. De certo, você tem experiências tão ou mais profundas e importantes do que as relatadas aqui. Será enriquecedor para todos se você dispuser de alguns minutos para compartilhar suas experiências conosco. Montessori ainda é importante para todos nós pelos mais diversos motivos. Por favor, conte os seus! Em qualquer situação de discussão, aprendizado ou formação em Montessori, há controvérsias sobre a questão: “É possível ser um pouco Montessori?” e para refletir sobre essa questão precisamos recorrer a dois conceitos: o conceito fetiche e o de método científico. Mas, primeiro, vamos a um pouco de história.
Em 1912, três anos depois de Maria Montessori terminar “O Método da Pedagogia Científica como Aplicado à Educação Infantil na Casa das Crianças” – em seu título original em italiano – o livro foi traduzido para o inglês como “The Montessori Method” – O Método Montessori. Uma quinta edição do mesmo livro foi terminada por Montessori em 1949, e recebeu tantas modificações em relação à versão original que Montessori preferiu lhe alterar o título e chamar de “A Descoberta da Criança”. Esta foi traduzido para o português como “Pedagogia Científica”. Há uma forma de olhar para a história que privilegia o uso histórico das palavras. Em um breve parágrafo vamos dar uma olhada no que aconteceu com essas traduções. O livro de Montessori, em 1909, chamava-se “O Método da Pedagogia Científica como Aplicado à Educação Infantil na Casa das Crianças”. Era, portanto, uma obra sobre um método científico e uma descrição de um processo que aconteceu em um lugar específico. Quanto, nos Estados Unidos, a obra é traduzida para “O Método Montessori”, elimina-se toda a ideia de ciência (Pedagogia Científica) para se transformar aquilo no trabalho de uma pessoa especial: Montessori. Elimina-se a ideia de um processo (...como aplicado...) para se transformar aquilo em um produto pronto. E se elimina a ideia de um momento/local específicos para se transformar aquilo em algo atemporal e não-localizado. Elimina-se tudo o que era vestígio de trabalho, esforço e processo. A forma como isso acontece na quinta edição é menos clara, e não vamos abordá-la aqui, ela também não é tão importante para nosso raciocínio. Quando nós eliminamos de algo todo o trabalho de criação que há por trás do produto, e transformamos o processo inteiro em um milagre, em uma manifestação espontânea da natureza, como se nenhum indivíduo humano tivesse dedicado horas de vida, esforço intelectual, suor e noites em claro para que um determinado produto existisse, nos transformamos esse produto em um fetiche. E esse fetiche, ou esse produto sem processo, sem história, se torna um símbolo que nós admiramos, muitas vezes cultuamos, e ao qual queremos nos igualar. Nós abandonamos a tentativa de compreender o processo para passar ao culto do produto. Isso acontece com smartphones e com o método Montessori. No caso de Montessori, especialmente, trata-se de um método científico, e nesse sentido, é ainda mais importante que o processo seja preservado. Em ciência, no sentido mais cartesiano do termo, exige-se um determinado passo a passo para que se obtenha determinados resultados. Em Montessori, o passo a passo poderia ser o conjunto de materiais (que no caso de Montessori era composto de 32 materiais somente, e no caso do fantástico artigo de Angeline Lillard, é basicamente composto de 68 materiais), a conduta do professor, a preparação do ambiente, o conhecimento e o respeito às necessidades da criança. O resultado, o único resultado de importância fundamental, é a criança equilibrada, ou normalizada, para usar o termo de Montessori. Por um momento tome em consideração um experimento para fazer, digamos, vidro. Sabemos que, basicamente, vidro é areia derretida. Digamos, então, que achamos que areia é muito pouco, muito simples, desatualizado (“se faz vidro assim há tanto tempo...”) e, sem muito estudo, decidimos inovar e utilizar sal. É claro, não vai haver vidro. A comparação é simplista, mas vale para quase qualquer fenômeno científico, ou natural. Se misturamos ingredientes diferentes, ou de forma diferente, ou em proporção diferente, ou em ordem diferente, até pode ser que tenhamos resultados parecidos – se houver muito estudo, ou um golpe de sorte – mas há grandes chances de termos resultados diferentes. O desligamento de Montessori daquilo que havia de científico em seu início nos dá, por vezes, a impressão de que um ilimitado número de recursos pode ser usado em sala de aula e uma ilimitada gama de pequenas transformações pode ser feita sem que o resultado (o equilíbrio natural da criança, a normalização) seja alterado. Infelizmente, não é assim. Se, sem muita experiência, muita observação e muito estudo, fazemos modificações nas indicações precisas de Maria Montessori, inevitavelmente temos resultados muito diferentes. Dessa maneira, nos perguntamos se é possível ser meio Montessori. Misturar o método Montessori com outros métodos. A própria Maria Montessori, no fim de sua vida, escreveu: “É um método que parece egoísta, que parece querer andar só, não misturando-se com nenhum outro; todavia nenhum outro método aproveita continuamente a ocasião para pregar a união e a paz mundial. // Quantas contradições! Não se vê aqui algo misterioso? [...] Em toda parte deveria se dar esse passo decisivo: aproveitar todos os esforços daqueles que, em diversas tentativas, têm procurado educar a infância. // É necessário tirar o método de seu isolamento, dar condições para que os estudiosos o avaliem, e sobretudo transmiti-lo da melhor maneira para os professores” (Maria Montessori, Formação do Homem – Cap. Contradições, p.10). Dessa forma, é e deve ser um desejo de qualquer professor e adulto montessoriano estabelecer diálogos com outros professores, de outras escolas, outras linhas de pedagogia. É e deve ser uma iniciativa de todos os professores e adultos montessorianos a conversa franca, aberta, sincera e cheia de desejo de aprender e aprimorar com defensores, pesquisadores, disseminadores e aplicadores de Waldorf, Reggio Emilia, Piaget, Vigotsky, Makarenko, Neil, Freire, Pacheco, Tião Rocha. É e deve ser. É e deve ser. Montessori não deve ser um método encastelado, trancafiado, ensimesmado, curvado sobre si mesmo. Não. Montessori deve ser aberto ao que há de universal na infância e na humanidade, e tudo o que puder ajudar a criança a criar o humano deve ser pensado, considerado com cuidado. Admirado mesmo, e aplicado até. Montessori deve ser um processo sempre em processo. Jamais um produto, jamais um fetiche. Por outro lado, e o outro lado é importante sempre, Montessori nunca pode deixar de ser o Método da Pedagogia Científica. Uma tradução de título não pode se tornar o modo de trabalho de um método inteiro. Nós precisamos, como classe de profissionais, lembrar todo o tempo de que estamos trabalhando com ciência. E trabalhar com ciência é trabalhar sério. Não basta amar a criança, dizia Montessori, “é necessário antes amar e conhecer o universo”. Não basta acreditar que um material de outra vertente pedagógica, ou mesmo um outro material vendido em lojas de materiais montessorianos, seja de fato interessante para a sala. É necessário entende-lo exaustivamente, experimentá-lo. Pensar para que serve e onde entra na sequência de materiais que se utiliza na sala. É necessário entregar o material, finalmente, depois de muita análise, para algumas crianças, e observar com muita atenção se, além de ser interessante e atrativo, contribui de alguma forma. Lillard, em outro artigo brilhante, nos alerta por exemplo para o perigo de um excesso de quebra-cabeças na sala de aula. Eles são sempre interessantes, e podem tomar a atenção da criança de forma tal que façam com que ela se abstenha de desenvolver outras áreas de si mesma por uma atração excessiva a esse tipo de material. As atividades coletivas, as apresentações, os materiais, os arranjos e a decoração do ambiente, as histórias que se conta e as canções que se canta. Tudo precisa ser arranjado aos poucos, devagar, e precisamos continuar com nossas mãos, nossos pés, nossa teoria e nossa prática atendendo aos requisitos de uma prática científica. Haja observação. Por outro lado, um terceiro ainda, há quem não queira ser Montessori, mas queira ter um pouco de Montessori na escola. Aqui parece razoável defender: da mesma maneira que a presença de algo típico de Reggio Emilia em uma sala montessoriana não faz dessa sala um ambiente um pouco Reggio, um material montessoriano não faz de uma escola um pouco Montessori. Aqui, de novo, é necessário abandonar o fetiche. É necessário lembrar que adotar um pouco de Montessori é possível – é claro que é -, mas que isso não fará da escola uma escola um pouco montessoriana. É possível utilizar a linha, por exemplo, para treinar movimento, e isso é usar um pouco de Montessori. Mas se essa linha é usada só coletivamente, ou é muito usada para atividades coletivas, ou é um espaço de isolamento e castigo, então temos um pouco de Montessori (a linha em si) em um ambiente nada montessoriano. Entretanto, se um ambiente com poucos materiais, ou materiais adaptados por falta de recursos financeiros, com uma mobília não-tão-perfeita, tem um professor montessoriano, com a conduta típica de sua classe profissional, e tem uma sequência de materiais que ajuda na preparação indireta dos aprendizados, na autoeducação, e dá origem à normalização, ao equilíbrio, será muito difícil dizer que essa sala, mesmo tendo só um pouco dos objetos montessorianos não é uma sala integralmente Montessori. A discussão não termina aqui. A ideia não é terminar com ela. Nem pode ser, segundo Montessori. A ideia é que olhemos com vagar para a contradição. Aliás, “Contradições” é o nome do capítulo de Formação do Homem de onde tiramos o trecho acima. Vale ler. Nós não precisamos de uma posição rígida e imutável. Montessori não tinha. Lembremos que ela alterou seu livro inaugural ao longo de cinco edições, e alterou até o título da quinta. Nós precisamos examinar tudo com cuidado, não podemos jamais abandonar a Pedagogia Científica, e não podemos nos deixar enganar pelo fetiche. Então, se fizermos isso, os passeios pelas Contradições serão enriquecedores para nós e, com sorte, para os pequenos construtores da humanidade cuja vida nos cabe auxiliar. Dando continuidade à série sobre Grandes Temas em Montessori, esta semana temos os textos de Alexandra Rodrigues Pinto e Olga Molina¹ sobre Concentração e sobre o Agrupamento de Classes. Os textos vêm juntos porque houve um atraso nas publicações recentes. 1) Concentração
“A criança que se concentra é imensamente feliz; ignora o vizinho ou o que se faz à sua volta. Por um instante o seu espírito é como o de um eremita no deserto; nasceu nela um novo conhecimento, o da própria individualidade... O processo espiritual é evidente: desliga-se a si mesma do mundo para adquirir o poder de se lhe unir.” [1] De acordo com Maria Montessori, é o interesse verdadeiro por uma atividade que permitirá à criança encontrar em si mesma a forma de se concentrar no trabalho. Quando a criança se depara com uma atividade que de fato absorve a atenção, ela terá encontrado também a sua concentração. A concentração é, portanto, uma conquista da criança obtida em sua experiência, não sendo algo que se lhe possa ensinar.[2] O professor disponibilizará para cada criança atividades que tenham a justa medida para o seu desenvolvimento e a atividade correta para a criança terá a função de despertar seu espírito para essa concentração espontânea. A concentração emergirá, então, juntamente com o desabrochar da própria criança; no dizer de Montessori, fará renascer o seu espírito. A consequência desta conquista de valor inestimável é que a criança estará preparada tanto para o auto desenvolvimento como para a vida social. Por paradoxal que possa parecer, quando a criança adquire a capacidade de se concentrar, ou seja, de se isolar do mundo à sua volta para realizar uma atividade zelosamente, esta capacidade conduzirá os seus esforços fazendo com que ela seja capaz de desenvolver um trabalho constante, regular, repetindo exercícios e tornando-se capaz de operar a livre escolha a serviço de seu desenvolvimento. Assim, ela se torna mais forte e calma internamente e, quando volta ao mundo, por assim dizer, volta interessada, amorosa e cooperativa.[3] Importa ressaltar que a concentração da mente infantil é sempre acompanhada por movimentos precisos de seu corpo, particularmente de suas mãos, que denotam um ritmo constante e um envolvimento pleno da criança na atividade que estiver realizando. Por essa razão, critérios como foco na atividade, limite de movimentos corporais, uso das mãos, repetição, precisão e prazer podem ser medidas de observação da qualidade da concentração infantil. 5) Agrupamento de classes Maria Montessori propugnou a estrutura de agrupamento de classes (idades mistas de 3 em 3 anos), não apenas para assegurar o trabalho em equipe, o desenvolvimento emocional e o incentivo à interação social, mas também em razão da especificidade na forma da aprendizagem infantil: “As crianças de 3 idades diferentes estão no mesmo ciclo de crescimento. (1 a 3 anos, 3 a 6 anos, 6 a 9 anos, 9 a 12 anos, ....). Para que a educação ocorra de modo natural e não artificial, as idades e interesses se misturam, mas não a forma como aprendem; os pequenos olham para os maiores como que para modelos, os maiores exercem sua liderança mostrando aos pequeninos como fazer as coisas, e têm a possibilidade de "voltar" a experimentar aquilo que uma vez já fizeram. Numa classe de idades mistas, vive-se uma vida normal, em que cada criança aprende no seu próprio ritmo, pode repetir as experiências tantas vezes quanto precisar... sem medo de críticas, em que as mais velhas se tornam conscientes do que sabem e têm a oportunidade da liderança natural mostrando aos menores as coisas que já conhece. Tudo se faz espontaneamente, sob a vista de um professor preparado para observar, e seguir cada aluno individualmente no seu desenvolvimento.” [4] Uma sala agrupada compõe um ambiente social que se assemelha ao convívio familiar. Nele as habilidades e competências emergentes de cada criança beneficiam o grupo inteiro. As crianças compartilham regularmente as experiências adquiridas e são encorajadas a se ajudarem entre si em seus esforços. A atividade individual é portanto vista no contexto da vida comunitária, onde cada criança vivencia o seu lugar ao mesmo tempo individualmente e como membro de um grupo, o que favorece a conquista de uma autonomia que não se opõe ao interesse do grupo (individualismo), mas ao contrário, favorece-o. Em sua pesquisa oriunda de longa e contínua observação da atividade infantil em diversos lugares do mundo, Montessori percebeu que há uma troca espontânea entre crianças que estão em diferentes estágios de desenvolvimento. O agrupamento de classes garante que as crianças sejam expostas tanto a colegas mais velhos quanto a colegas mais jovens, facilitando a aprendizagem por observação e também a cooperação. As crianças mais velhas gostam de orientar as mais novas, que por sua vez se encantam em aprender com outras crianças ao invés de com adultos. Por outro lado, e à medida em que as crianças mais velhas têm a oportunidade de compartilhar seus aprendizados com as mais jovens, elas solidificam internamente estas experiências. É uma maneira então, de reforçar o próprio conhecimento. Outro fator importante no trabalho desenvolvido numa sala agrupada é que, muitas vezes, as crianças pequenas beneficiam-se com apresentações de atividades avançadas feitas pelo professor e direcionadas a outra faixa etária. Assim, os professores, no contexto de agrupamento de classes, têm o cuidado de apresentar atividades aos alunos mais velhos, de forma a permitir que crianças mais jovens interessadas em assistir e ouvir, possam também se beneficiar. Outro ponto positivo dessa forma de agrupamento é que crianças num mesmo estágio de desenvolvimento realizam tanto as mesmas atividades em horários diferentes, como atividades diferentes no mesmo horário, evitando a competição e a comparação – que são ações avessas ao universo Montessori - para o qual todas as crianças têm o seu lugar, o seu modo e um tempo próprio para o seu desenvolvimento singular. Conclusão Como bons ingredientes que, quando misturados, resultam um alimento excelente, os pilares do método Montessori, mesclam-se incessantemente de modo a compor o que Maria Montessori designou a “educação para a vida”. Essa nova concepção não opera uma pedagogia nos moldes de uma assimilação constante e gradativa da criança no universo adulto, mas na construção concreta e efetiva de uma personalidade infantil autônoma, base fundamental para o adulto que lhe sucederá. Esse adulto, a quem foi dada a oportunidade de constituir-se a partir de sua própria natureza e aptidões, restará, por sua vez, apto a construir uma sociedade pacífica e harmoniosa, tal qual experimentou em seu desenvolvimento pessoal. Finalmente, e apenas a título de inspiração para um “mãos à obra” montessoriano, terminamos com este impressionante depoimento de Maria Montessori: “Comecei a minha obra como um camponês que tivesse guardado bom trigo para semente e a quem houvessem oferecido um campo de terra fértil para o semear livremente. Mas tal não aconteceu: logo que arranquei os torrões daquele solo, encontrei ouro em vez de trigo, pois os torrões escondiam um precioso tesouro.” [5] [1] MONTESSORI, Mente Absorvente, p.226. [2] “Visto que ninguém de fora pode dar à criança concentração ou organizar a sua psique, ela deve fazê-lo por si.” MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 184. [3] MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 227 [4] Perry, Celma Pinho. Entrevista a Revista OMB: “Montessori em casa”. Set/2003. Edição n.6. Setembro de 2003. Em http://www.omb.org.br/revista_omb/revista06.pdf, acesso em 03/12/2013. [5] MONTESSORI, A criança, p. 109. Dando continuidade à série sobre Grandes Temas em Montessori, esta semana temos o texto de Alexandra Rodrigues Pinto e Olga Molina¹ sobre a Autonomia. “O primeiro instinto da criança é agir sozinha, sem a ajuda de outrem, e o seu primeiro ato consciente de independência é defender-se dos que procuram ajudá-la.” [1] Para Maria Montessori a busca pela autonomia e pela construção da própria personalidade está presente na criança desde o seu nascimento, em todos os seus estágios evolutivos. O alcance desta independência física e mental da criança dá-se através de seu esforço individual à medida que lhe são oferecidas as devidas condições. No contexto da sala de aula, a autonomia, para poder nascer e crescer na criança, depende, em grande parte, da forma de atuação do professor. O professor é responsável pela disponibilização dos materiais apropriados àquela criança permitindo-lhe desafios precisos para que ela obtenha em seu trabalho diário, sucesso e autoconfiança, elementos que integrarão uma estrutura psíquica autônoma. Além disso, é trabalho do professor tornar-se “dispensável”, fazendo com que a criança encontre referências para realizar as atividades dentro dela mesma e não na figura do professor. O sistema Montessori é todo criado para que a criança sinta cada vez mais, que é ela quem está no comando de seu próprio desenvolvimento, portanto ela é o seu melhor professor. Isso desenvolve na criança um controle interno e um conhecimento dos materiais com os quais está trabalhando, não importa seu estágio. Em qualquer estágio, a criança sentirá esse eixo dentro de si mesma, o sentimento de que ela pode se apropriar dos materiais de maneira a promover o desenvolvimento de suas capacidades e potencialidades, ou seja, ela conquista uma autonomia para o seu desenvolvimento. A autonomia em Montessori, portanto, nasce do despertar desta aspiração interna pelo trabalho constante, a partir da qual a criança pode pensar, pode escolher, pode mover-se para o seu próximo estágio, pode experimentar uma variedade de coisas que a fascinam, que despertam a sua verdadeira curiosidade, podendo, inclusive, escolher trabalhar ou não, sendo essa escolha também expressão de sua autonomia e de seus desígnios pessoais. O controle de erro presente nos materiais Montessori também expressa o princípio basilar Montessori da autonomia. A possibilidade do controle de erro diz à criança que ela é seu próprio professor; que ela não necessita, em seu trabalho diário de repetição para a aprendizagem, da constante presença do professor enquanto alguém que a corrige ou que a ensina algo. É através do controle de erro que a criança poderá perceber seu erro por si mesma e corrigi-lo também por si mesma. Corrigir-se torna-se algo natural e parte do trabalho pessoal, diário da criança. [1] MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 81. ¹ Autoras:
Alexandra Rodrigues Pinto, brasileira, residente em São Paulo. Musicista graduada pela Faculdade de Artes Alcântara Machado e advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito. Psicopedagoga licenciada pela UNIARA e formanda em Educação Infantil Montessori (3 a 6 anos) pelo CEMSP. Atua em projetos para a Educação Integral de crianças e adolescentes em Instituições do Terceiro Setor. Diretora Presidente do Instituto Outra História, desenvolve um trabalho de pesquisa em Educação e Desenvolvimento Humano a partir do uso das linguagens das artes e das histórias da tradição oral da humanidade. Olga Molina, Brasileira, residente em São Paulo e professora de música no ensino infantil e fundamental na Escola Graduada de São Paulo desde 1994. Especialista no Método Kodaly pela Danube Bend Summer University de Esztergom (Hungria) e em Musicoterapia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, SP. Destacam-se também em sua formação cursos sobre o Método Willems com Jacques Chapuis, Orff Schulwerk com Verena Maschat, Música para Bebés com Wakquiria Passos Claro e Josette Feres (Brasil) e Formação Musical para Crianças com Martine Barret (França). Estudou percepção musical no Conservatório Brooklin Paulista. É formada em Letras (português/inglês) pela PUC-SP e em piano pelo Conservatório Musical Paulistano. É diretora do Conservatório Musical Mozart (São Paulo) onde atua como Coordenadora dos Cursos de Formação para Professores de Música. Colaboradora do livro "Música na Escola"(MEC, 2012) Dando continuidade à série sobre Grandes Temas em Montessori, esta semana temos o texto de Alexandra Rodrigues Pinto e Olga Molina¹ sobre o Educador Preparado. Um dos papéis fundamentais do professor no contexto da pedagogia Montessori é despertar na criança o fenômeno que ela denomina uma ‘disciplina interior’ ou normalização. Esta disciplina deverá emergir na criança a partir de seu interesse verdadeiro, espontâneo pelo mundo que a cerca. Para Montessori, a natureza profunda da criança já é guia para essa disciplina a serviço do conhecimento do mundo. Porém, em muitos casos, quando essa natureza não é cultivada - e muitas vezes tendo sido até oprimida - encontra-se adormecida e deverá ser novamente despertada.[1] “A disciplina nascerá quando a criança concentrar sua atenção no objeto que a atrai e permite não só um útil exercício, mas a verificação do erro. Graças a estes exercícios, cria-se uma admirável coordenação da individualidade infantil, pela qual a criança se torna calma, radiosamente feliz, ocupada, esquecida de si, por consequência, indiferente aos prêmios ou recompensas materiais. Estas crianças conquistadoras de si mesmas e do mundo que as circunda são verdadeiros super-homens que a nós revelam a divina alma que há no homem.” [2] São os materiais então que terão o função de acordar a criança para o seu interesse verdadeiro. Nesse contexto, o professor é o mediador entre os materiais e a criança; é ele quem apresenta os materiais, ao mesmo tempo em que observa atentamente como a criança se relaciona com cada um deles, pois a normalização consiste justamente em conduzir a criança a encontrar trabalhos que façam sentido para ela. O professor trabalha, portanto, para fazer despontar na criança uma “disciplina espontânea”, ou seja, uma “disciplina na liberdade”. Quando isso acontece, as características ditas negativas da criança desaparecem à medida em que o trabalho traz à tona um aspecto psíquico novo – antes oculto (ou inconsciente) – que para Maria Montessori é a verdadeira aspiração da criança: a constância no trabalho.[3] Para conduzir as crianças à normalização, o professor terá que:
O professor é portanto, o grande zelador do edifício Montessori, responsabilizando-se pela promoção e cuidado de um ambiente educativo em seu mais amplo sentido. Além dos cuidados constantes com o ambiente físico, incluindo a sala de aula e os materiais específicos de cada área de atividade, o educador é também o criador e o mantenedor da atmosfera da normalização, indispensável à aprendizagem e ao desenvolvimento das crianças em direção à sua autonomia. [1] “Mas sabedoria e disciplina estão a espera de serem despertadas na criança.” (MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 219). [2] MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 218. [3] “… verifiquei que tais características desaparecem mal as crianças se interessam por um trabalho que as atraia…” (MONTESSORI, Mente Absorvente, p. 169). [4] Autoconhecimento como desenvolvimento pessoal: a tarefa de ser guia, sem no entanto, arrogar ensinar, exige autoconhecimento. Autoconhecimento significa tornar-se mais e mais consciente de si mesmo, de suas reações, de suas crenças, de seus pensamentos e sentimentos para observar e perceber como este “si mesmo” opera no papel de educador. Somente um adulto engajado em conhecer-se pode se desenvolver como educador e com isso ser ponte para o desenvolvimento da criança. Assim como na alfabetização, todo o patrimônio linguístico do educador, seu nível de vocabulário, de pensamento, expressão gestual, verbal, são fatores a serem constantemente revistos e desenvolvidos, o desenvolvimento global da criança também depende do desenvolvimento pessoal do educador, uma vez que só se transmite aquilo que se possui internalizado e integrado. Um educador não preparado pode tanto impedir, como não conduzir, uma criança para o desenvolvimento de seus desígnios, causando nela as fugas ou desvios (posse, medo, dependência, insegurança), comportamentos certamente opostos e impeditivos ao sentido do próprio desenvolvimento humano, qual seja, o atingimento da maturidade e a independência individuais, estas por sua vez, promotoras de um convívio humano harmônico e solidário. A preparação do adulto envolve portanto, a assunção de um desenvolver-se constante, incessante, de um olhar para cada novo mistério que a vida propõe, mistérios estes, que no caso de um educador, são trazidos no mais das vezes, pelas próprias crianças e sua incessante necessidade de desenvolvimento. (MONTESSORI, A criança, pp. 140/165 e MONTESSORI, Educação para o desenvolvimento humano, pp. 84/94). ¹ Autoras:
Alexandra Rodrigues Pinto, brasileira, residente em São Paulo. Musicista graduada pela Faculdade de Artes Alcântara Machado e advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito. Psicopedagoga licenciada pela UNIARA e formanda em Educação Infantil Montessori (3 a 6 anos) pelo CEMSP. Atua em projetos para a Educação Integral de crianças e adolescentes em Instituições do Terceiro Setor. Diretora Presidente do Instituto Outra História, desenvolve um trabalho de pesquisa em Educação e Desenvolvimento Humano a partir do uso das linguagens das artes e das histórias da tradição oral da humanidade. Olga Molina, Brasileira, residente em São Paulo e professora de música no ensino infantil e fundamental na Escola Graduada de São Paulo desde 1994. Especialista no Método Kodaly pela Danube Bend Summer University de Esztergom (Hungria) e em Musicoterapia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, SP. Destacam-se também em sua formação cursos sobre o Método Willems com Jacques Chapuis, Orff Schulwerk com Verena Maschat, Música para Bebés com Wakquiria Passos Claro e Josette Feres (Brasil) e Formação Musical para Crianças com Martine Barret (França). Estudou percepção musical no Conservatório Brooklin Paulista. É formada em Letras (português/inglês) pela PUC-SP e em piano pelo Conservatório Musical Paulistano. É diretora do Conservatório Musical Mozart (São Paulo) onde atua como Coordenadora dos Cursos de Formação para Professores de Música. Colaboradora do livro "Música na Escola"(MEC, 2012) |
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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