Em qualquer situação de discussão, aprendizado ou formação em Montessori, há controvérsias sobre a questão: “É possível ser um pouco Montessori?” e para refletir sobre essa questão precisamos recorrer a dois conceitos: o conceito fetiche e o de método científico. Mas, primeiro, vamos a um pouco de história.
Em 1912, três anos depois de Maria Montessori terminar “O Método da Pedagogia Científica como Aplicado à Educação Infantil na Casa das Crianças” – em seu título original em italiano – o livro foi traduzido para o inglês como “The Montessori Method” – O Método Montessori. Uma quinta edição do mesmo livro foi terminada por Montessori em 1949, e recebeu tantas modificações em relação à versão original que Montessori preferiu lhe alterar o título e chamar de “A Descoberta da Criança”. Esta foi traduzido para o português como “Pedagogia Científica”. Há uma forma de olhar para a história que privilegia o uso histórico das palavras. Em um breve parágrafo vamos dar uma olhada no que aconteceu com essas traduções. O livro de Montessori, em 1909, chamava-se “O Método da Pedagogia Científica como Aplicado à Educação Infantil na Casa das Crianças”. Era, portanto, uma obra sobre um método científico e uma descrição de um processo que aconteceu em um lugar específico. Quanto, nos Estados Unidos, a obra é traduzida para “O Método Montessori”, elimina-se toda a ideia de ciência (Pedagogia Científica) para se transformar aquilo no trabalho de uma pessoa especial: Montessori. Elimina-se a ideia de um processo (...como aplicado...) para se transformar aquilo em um produto pronto. E se elimina a ideia de um momento/local específicos para se transformar aquilo em algo atemporal e não-localizado. Elimina-se tudo o que era vestígio de trabalho, esforço e processo. A forma como isso acontece na quinta edição é menos clara, e não vamos abordá-la aqui, ela também não é tão importante para nosso raciocínio. Quando nós eliminamos de algo todo o trabalho de criação que há por trás do produto, e transformamos o processo inteiro em um milagre, em uma manifestação espontânea da natureza, como se nenhum indivíduo humano tivesse dedicado horas de vida, esforço intelectual, suor e noites em claro para que um determinado produto existisse, nos transformamos esse produto em um fetiche. E esse fetiche, ou esse produto sem processo, sem história, se torna um símbolo que nós admiramos, muitas vezes cultuamos, e ao qual queremos nos igualar. Nós abandonamos a tentativa de compreender o processo para passar ao culto do produto. Isso acontece com smartphones e com o método Montessori. No caso de Montessori, especialmente, trata-se de um método científico, e nesse sentido, é ainda mais importante que o processo seja preservado. Em ciência, no sentido mais cartesiano do termo, exige-se um determinado passo a passo para que se obtenha determinados resultados. Em Montessori, o passo a passo poderia ser o conjunto de materiais (que no caso de Montessori era composto de 32 materiais somente, e no caso do fantástico artigo de Angeline Lillard, é basicamente composto de 68 materiais), a conduta do professor, a preparação do ambiente, o conhecimento e o respeito às necessidades da criança. O resultado, o único resultado de importância fundamental, é a criança equilibrada, ou normalizada, para usar o termo de Montessori. Por um momento tome em consideração um experimento para fazer, digamos, vidro. Sabemos que, basicamente, vidro é areia derretida. Digamos, então, que achamos que areia é muito pouco, muito simples, desatualizado (“se faz vidro assim há tanto tempo...”) e, sem muito estudo, decidimos inovar e utilizar sal. É claro, não vai haver vidro. A comparação é simplista, mas vale para quase qualquer fenômeno científico, ou natural. Se misturamos ingredientes diferentes, ou de forma diferente, ou em proporção diferente, ou em ordem diferente, até pode ser que tenhamos resultados parecidos – se houver muito estudo, ou um golpe de sorte – mas há grandes chances de termos resultados diferentes. O desligamento de Montessori daquilo que havia de científico em seu início nos dá, por vezes, a impressão de que um ilimitado número de recursos pode ser usado em sala de aula e uma ilimitada gama de pequenas transformações pode ser feita sem que o resultado (o equilíbrio natural da criança, a normalização) seja alterado. Infelizmente, não é assim. Se, sem muita experiência, muita observação e muito estudo, fazemos modificações nas indicações precisas de Maria Montessori, inevitavelmente temos resultados muito diferentes. Dessa maneira, nos perguntamos se é possível ser meio Montessori. Misturar o método Montessori com outros métodos. A própria Maria Montessori, no fim de sua vida, escreveu: “É um método que parece egoísta, que parece querer andar só, não misturando-se com nenhum outro; todavia nenhum outro método aproveita continuamente a ocasião para pregar a união e a paz mundial. // Quantas contradições! Não se vê aqui algo misterioso? [...] Em toda parte deveria se dar esse passo decisivo: aproveitar todos os esforços daqueles que, em diversas tentativas, têm procurado educar a infância. // É necessário tirar o método de seu isolamento, dar condições para que os estudiosos o avaliem, e sobretudo transmiti-lo da melhor maneira para os professores” (Maria Montessori, Formação do Homem – Cap. Contradições, p.10). Dessa forma, é e deve ser um desejo de qualquer professor e adulto montessoriano estabelecer diálogos com outros professores, de outras escolas, outras linhas de pedagogia. É e deve ser uma iniciativa de todos os professores e adultos montessorianos a conversa franca, aberta, sincera e cheia de desejo de aprender e aprimorar com defensores, pesquisadores, disseminadores e aplicadores de Waldorf, Reggio Emilia, Piaget, Vigotsky, Makarenko, Neil, Freire, Pacheco, Tião Rocha. É e deve ser. É e deve ser. Montessori não deve ser um método encastelado, trancafiado, ensimesmado, curvado sobre si mesmo. Não. Montessori deve ser aberto ao que há de universal na infância e na humanidade, e tudo o que puder ajudar a criança a criar o humano deve ser pensado, considerado com cuidado. Admirado mesmo, e aplicado até. Montessori deve ser um processo sempre em processo. Jamais um produto, jamais um fetiche. Por outro lado, e o outro lado é importante sempre, Montessori nunca pode deixar de ser o Método da Pedagogia Científica. Uma tradução de título não pode se tornar o modo de trabalho de um método inteiro. Nós precisamos, como classe de profissionais, lembrar todo o tempo de que estamos trabalhando com ciência. E trabalhar com ciência é trabalhar sério. Não basta amar a criança, dizia Montessori, “é necessário antes amar e conhecer o universo”. Não basta acreditar que um material de outra vertente pedagógica, ou mesmo um outro material vendido em lojas de materiais montessorianos, seja de fato interessante para a sala. É necessário entende-lo exaustivamente, experimentá-lo. Pensar para que serve e onde entra na sequência de materiais que se utiliza na sala. É necessário entregar o material, finalmente, depois de muita análise, para algumas crianças, e observar com muita atenção se, além de ser interessante e atrativo, contribui de alguma forma. Lillard, em outro artigo brilhante, nos alerta por exemplo para o perigo de um excesso de quebra-cabeças na sala de aula. Eles são sempre interessantes, e podem tomar a atenção da criança de forma tal que façam com que ela se abstenha de desenvolver outras áreas de si mesma por uma atração excessiva a esse tipo de material. As atividades coletivas, as apresentações, os materiais, os arranjos e a decoração do ambiente, as histórias que se conta e as canções que se canta. Tudo precisa ser arranjado aos poucos, devagar, e precisamos continuar com nossas mãos, nossos pés, nossa teoria e nossa prática atendendo aos requisitos de uma prática científica. Haja observação. Por outro lado, um terceiro ainda, há quem não queira ser Montessori, mas queira ter um pouco de Montessori na escola. Aqui parece razoável defender: da mesma maneira que a presença de algo típico de Reggio Emilia em uma sala montessoriana não faz dessa sala um ambiente um pouco Reggio, um material montessoriano não faz de uma escola um pouco Montessori. Aqui, de novo, é necessário abandonar o fetiche. É necessário lembrar que adotar um pouco de Montessori é possível – é claro que é -, mas que isso não fará da escola uma escola um pouco montessoriana. É possível utilizar a linha, por exemplo, para treinar movimento, e isso é usar um pouco de Montessori. Mas se essa linha é usada só coletivamente, ou é muito usada para atividades coletivas, ou é um espaço de isolamento e castigo, então temos um pouco de Montessori (a linha em si) em um ambiente nada montessoriano. Entretanto, se um ambiente com poucos materiais, ou materiais adaptados por falta de recursos financeiros, com uma mobília não-tão-perfeita, tem um professor montessoriano, com a conduta típica de sua classe profissional, e tem uma sequência de materiais que ajuda na preparação indireta dos aprendizados, na autoeducação, e dá origem à normalização, ao equilíbrio, será muito difícil dizer que essa sala, mesmo tendo só um pouco dos objetos montessorianos não é uma sala integralmente Montessori. A discussão não termina aqui. A ideia não é terminar com ela. Nem pode ser, segundo Montessori. A ideia é que olhemos com vagar para a contradição. Aliás, “Contradições” é o nome do capítulo de Formação do Homem de onde tiramos o trecho acima. Vale ler. Nós não precisamos de uma posição rígida e imutável. Montessori não tinha. Lembremos que ela alterou seu livro inaugural ao longo de cinco edições, e alterou até o título da quinta. Nós precisamos examinar tudo com cuidado, não podemos jamais abandonar a Pedagogia Científica, e não podemos nos deixar enganar pelo fetiche. Então, se fizermos isso, os passeios pelas Contradições serão enriquecedores para nós e, com sorte, para os pequenos construtores da humanidade cuja vida nos cabe auxiliar.
1 Comentário
6/6/2016 18:14:20
Método pedagógico interessante, uma vez que incentiva a criatividade da criança para outras formas de aprendizado, além do aprendizado tradicional conduzido por muitas instituições de ensino. Estou engajado na área da educação e acho fundamental, principalmente para as crianças, que o professor trabalhe com materiais didáticos pedagógicos, em salas de aulas diferenciadas, quebrando um pouco o sistema padrão de aprendizado. E isso que o método Montessoriano faz. Como o próprio texto diz, não precisamos de metodologias imutáveis e rígidas, precisamos inovar a educação, fazendo com que a criança se sinta motivada a aprender.
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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