Maria Montessori era, acima de tudo, uma investigadora da natureza humana. Ao longo de mais de meio século trabalhando com crianças pequenas, notou uma série de fenômenos psicológicos preciosos tomando forma diante de seus olhos. Ao mais importante deles todos nomeou normalização. A normalização, segundo ela, é o “objetivo mais importante de todo o nosso trabalho” (Mente Absorvente). Antes de continuar, você pode entender o que é a normalização aqui, aqui, aqui e aqui. O termo causa estranheza para falantes da língua portuguesa, porque nos faz lembrar algo como “norma”, “normatizante”, e para alguns de nós lembra a disciplina de Foucault, com um rigoroso sistema de vigilância e punição. Não se trata disso, como fica evidente pelos quatro artigos publicados anteriormente no blog do Centro de Educação Montessori de São Paulo. Entretanto, vivemos em um mundo no qual a ausência de evidência científica é motivo para a presunção da mentira. E Montessori defendia um método que fosse científico desde suas bases. Hoje, talvez, apreciasse uma definição de normalização mais científica do que aquela que pode formular ao seu tempo, com as ferramentas e os métodos de observação que tinha disponíveis. De toda forma, nossa modernidade a apreciará, e é em busca de uma definição assim que compomos este texto. O cérebro humano, ao longo de milhões de anos de evolução, se desenvolveu como que de dentro para fora. As partes mais internas de nosso cérebro são também as mais antigas, na evolução das espécies, e as mais instintivas. As partes mais recentes são externas e superiores. Entre as partes modernas do cérebro humano, destacam-se as áreas pré-frontais, essenciais para a existência do que chamamos de funções executivas. As funções executivas de fato diferenciam os humanos de outros animais. Em poucas palavras, essas funções se dividem em três classes maiores, que ajudam as crianças e os adultos a executarem uma série de funções mais ou menos específicas: MEMÓRIA DE TRABALHO é a capacidade de conter e manipular informação nas nossas cabeças por curtos períodos de tempo. Ajuda as crianças em: · Conectar informações de um parágrafo ao próximo; · Cálculos de muitos passos; · Jogos; · Seguir instruções de muitos passos; · Habilidades sociais como planejar, respeitar sua vez, retomar conversas ou atividades depois de intervalos. CONTROLE INIBITÓRIO é a capacidade de filtrar e dominar pensamentos e impulsos para resistir a tentações, distrações e hábitos e de parar para pensar antes de agir. É útil para as crianças em: · Controlar o que dizem e suas emoções; · Esperar até que se possa atende-las; · Seguir ordens; · Ignorar distrações e manter o foco. FLEXIBILIDADE MENTAL OU COGNITIVA é a capacidade de mudar, alternar e ajustar-se a demandas, prioridades ou perspectivas. É o que nos permite aplicar regras diferentes a contextos diferentes. Ajuda a criança em: · Respeitar regras distintas em ambientes distintos; · Aprender exceções e lidar com elas; · Tentar estratégias variadas para resolver desafios ou para solucionar situações de conflito social. Evidentemente, as funções executivas são de importância ímpar para o perfeito desenvolvimento da personalidade humana e compreendem grande parte do amadurecimento psicológico esperado de crianças pequenas. O seu desenvolvimento mais intenso ocorre justamente na fase que vai de três a seis anos, a idade das crianças de Casas de Crianças ao redor do mundo: As coincidências entre as características de funções executivas bem desenvolvidas e aquelas da normalização, além da idade em que os dois fenômenos ocorrem não são as únicas semelhanças a se traçar entre a descoberta de Montessori e a da neurociência moderna. Ocorre também que alguns fatores que mais ajudam no desenvolvimento de boas funções executivas também são aqueles que possibilitam o surgimento da Normalização
1. Interações que guiem a criança da total dependência à gradual independência do adulto: As instruções em salas de aula montessorianas são justamente aquelas que permitem à criança dominar seu ambiente e os recursos necessários para fazer da Casa o seu ambiente e viver lá como que em uma pequena comunidade. 2. Ambientes que ajudem a criança a praticar suas habilidades antes de ter de coloca-las em prática de verdade e sozinhas: Quando consideramos os trabalhos da área de Vida Prática, nada mais temos a não ser a possibilidade de treinar habilidades com materiais específicos para vir a aplica-las ao mundo e vida reais logo em seguida, a seu tempo. 3. Ambientes mais organizados e previsíveis: Um dos pressupostos dos ambientes montessorianos é que sejam imaculadamente organizados e que os materiais fiquem sempre exatamente no mesmo lugar, de maneira que qualquer coisa possa ser encontrada a qualquer momento por qualquer um. 4. Manter o mesmo cuidador por mais tempo: O ciclo de três anos que as crianças passam nas salas montessorianas nos levam a pensar no trabalho intenso e longo desenvolvido pelos professores e crianças, que têm a oportunidade de conviver por períodos mais estendidos. 5. Equipe treinada para o uso de ferramentas de desenvolvimento de funções executivas: Os professores formados em Montessori dominam verdadeiramente os materiais típicos do método e o tipo de apresentação necessária para possibilitar o uso real e útil de ferramentas que servirão à independência da criança e ao desenvolvimento de funções executivas excelentes. Além de todas as vantagens evidentes vistas acima, decorrentes do bom desenvolvimento de funções executivas, deve-se mencionar ainda que crianças que podem desenvolver essas capacidades com maior plenitude apresentam um maior equilíbrio emocional e maior habilidade de socialização, além de se saírem marcadamente melhor em testes de Matemática e Linguagem. A professora Angeline Lillard, autora de Montessori: The Science Behind the Genius, publicou recentemente um artigo na revista Science (uma das duas publicações científicas mais respeitadas do mundo) em que afirma: Entre as crianças de 5 anos, os alunos de Montessori se mostraram significantemente melhor preparados para o Ensino Fundamental I em leitura e Matemática do que os alunos não-montessorianos. Eles também se saíram melhor nos testes de "funções executivas", a habilidade de se adaptar a problemas mutáveis e mais complexos, um indicador de um futuro de sucesso na escola e na vida. (http://www.sciencemag.org/content/313/5795/1893.full?ijkey=3UWZqF01vQgbY&keytype=ref&siteid=sci) Por sua vez, a professora Adele Diamond, uma das maiores representantes dos estudos da neurologia e do desenvolvimento infantis, disse: O currículo montessoriano não menciona funções executivas, mas o que os montessorianos chamam de "normalização" inclui ter boas funções executivas. A normalização é uma mudança da desordem, da impulsividade e da falta de foco, para a autodisciplina, a independência, a organização e a paz. (http://www.youtube.com/watch?v=qgyUPH3a2Ss) Desta maneira, de mãos dadas com a ciência de nosso tempo, cada vez mais comprovando os benefícios superiores da educação montessoriana, propomos a busca por uma definição mais científica do processo de normalização da criança, que passe indubitavelmente pelas funções executivas e venha a desaguar em um desenvolvimento total do indivíduo, testemunhado diariamente por nós e almejado por toda a sociedade humana, já que corresponderia à expressão mais pura do potencial encerrado nos segredos da criação, latente na natureza humana. -- Todas as informações acerca de funções executivas foram retiradas do artigo do Centro para o Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard, disponível aqui: http://developingchild.harvard.edu/resources/multimedia/videos/inbrief_series/inbrief_executive_function
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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