Há um semestre, mais ou menos, foi publicado no Lar Montessori um artigo descrevendo as principais características da criança normalizada. Essas características são as apontadas por E.M. Standing em seu "Maria Montessori: Her Life and Work". Como naquele artigo o tema foi analisado com bastante cuidado, aqui faremos algo diferente e bastante ilustrativo. Contaremos algumas histórias que ilustram o comportamento da criança que já readquiriu seu equilíbrio natural.
Não vamos contar uma historinha para cada item, porque seriam anedotas demais. Uniremos alguns grupos de itens representados por cada episódio e vamos relembrar narrativas de Maria Montessori e de várias outras fontes, inclusive um ou dois registros de observações que fiz em salas montessorianas. 1 - Amor à Ordem Trabalhando com a aplicação do método Montessori em casa, tenho a chance de testemunhar transformações que afetam a família inteira, além das crianças. Cada vez que uma família opta por reorganizar um quarto e torná-lo montessoriano, muita coisa acontece. As crianças se tornam mais independentes e autônomas, exatamente como esperamos, mas tornam-se também muito mais exigentes. Se antes da transformação do quarto já gostavam de tudo no seu devido lugar e se mostravam confusas quando havia mudanças na decoração, agora esta característica se intensifica imensamente. Contam-nos que quando o quarto é remobiliado para as crianças, e sua cama vai para o chão, junto com seus brinquedos, que ficam em estantes mais baixas e suas roupas, que são guardadas nas últimas gavetas, rentes ao solo, as crianças começam a compreender como tudo tem de ficar. Quando os adultos resolvem mudar tudo de lugar, pequenos escândalos acontecem, e algumas mães chegam a contar de noites de insônia, até que a mobília fosse toda recolocada onde “deveria” estar e os brinquedos fossem guardados em suas caixas e prateleiras. Embora estas transformações sejam em casas e não em escolas, o mesmo acontece no ambiente preparado em escolas montessorianas, onde as crianças aprendem, como em casa, onde tudo deve ficar e onde guardar cada um dos materiais que terminam de utilizar, auxiliando, inclusive, os colegas mais novos, que ainda não aprenderam todo o mapa da sala. 2. Independência e Iniciativa / Poder de Agir por Escolha Era uma vez uma sala montessoriana onde tudo funcionava. Nesta sala, havia duas garotinhas sobre as quais trata esta história. Uma delas tinha três anos, e estava executando uma atividade com a professora, e a outra tinha seis anos e estava trabalhando sozinha. A menor, com a professora, trabalhava matemática. A professora lhe falava um número, que estava em um pequeno papel. A pequena colocava sobre o tapete o número correspondente de pecinhas de plástico. Depois, as contava e, então, a professora lhe mostrava o cartão que tinha nas mãos. Todas as vezes a menina se surpreendia por ter “adivinhado” o número do cartão. Em uma das vezes, quando adivinhou o número seis (um número alto!) ficou tão admirada que caiu para trás. Bateu a cabeça no chão. Claro, a pequena chorou, era esperado. O que ninguém esperava era a reação da maior, que interrompeu seu trabalho, foi até a geladeira da sala de aula, subiu em uma escadinha e pegou, no congelador, um saco de gelo em gel, para a cabeça da amiga. Não bastasse, levou até a colega que chorava, colocou o gelo em sua nuca e começou a conversar com ela: “O que você estava fazendo quando caiu?”, “Machucou muito?”, “Já está melhorando?”. A professora, diante desta obra de arte da infância, dignou-se a admirar e, depois, colocou o gelo de volta no congelador, quando o susto e a dor passaram. Impossível esperar mais independência e iniciativa, mais poder de agir por escolha, do que os demonstrados por esta amiga tão hábil em ajudar, não é? 3. Amor ao Silêncio e ao Trabalho Solitário Esta talvez seja a anedota mais famosa de toda a obra de Maria Montessori: a menina com os cilindros de madeira. Conta Montessori que em seus primeiros tempos como educadora, uma menina sentou-se a uma mesinha, com o material de cilindros para encaixar. Retirou-os todos, e os encaixou com dificuldade. Repetiu o exercício com mais sossego, e para garantir, o fez ainda uma vez. Então, olhou para o material, retirou todos os cilindros e refez o que havia feito até então, cada vez melhor, até o momento em que atingiu o grau máximo de performance, mas então, para seu deleite, decidiu continuar a repetir a atividade. Montessori, atônita, tentou atrapalhar a garota como pode. Dedicou vários minutos a tentar acabar com a concentração da pequena: fez com que as crianças todas cantassem e caminhassem pela sala, por exemplo. E nossa protagonista nem levantou os olhos do que fazia. Absolutamente inconformada, Montessori decidiu que daria um jeito de distrair a garota. Levantou a cadeira e a mesa da menina, com a criança em cima, e transportou tudo para a outra extremidade da sala. Somente para ter dois trabalhos: o de transportá-la e o de mostrar-se ainda mais incrédula, quando percebeu que a criança sequer mexera a cabeça. Continuava, concentrada e tranquila, a desenvolver sua atividade. Montessori, incrédula como já se disse, mas sempre observadora, contou: a criança repetiu a atividade, em absoluto e ininterrupto silêncio, quarenta vezes. 4. Concentração e Autodisciplina espontâneas Na mesma linha da garotinha que repetiu um exercício quarenta vezes, está o menino que montou a Torre Rosa em uma hora. Eu o estava observando em uma sala de aula, enquanto pegava todos os cubos da torre e os colocava espalhados em seu tapete. Depois, durante a montagem, utilizou-se das mais diversas técnicas. Como a torre deveria ser montada sobre uma plataforma um pouco mais alta que o chão, o primeiro teste do garoto era ver se o cubo entrava ou não debaixo da plataforma. Os que entravam iam para um lado, e os que não entravam iam para outro. Terminada a primeira separação, começou a colocar um cubo ao lado do outro, e deitar a cabeça no chão, no nível dos cubos, para ver com clareza qual era maior. Empilhava, acertava, voltava ao chão, sério, e continuava as comparações. Assim fez até o menor dos cubos. Quando colocou a peça de um centímetro cúbico no topo da torre, ficou de pé, afastou-se, olhou para ela e sorriu. 5. Apreensão da Realidade Uma mãe com quem converso conta: Estavam ela e a filha em um supermercado destes que vendem tudo, e caminhavam pela divisão de papelaria, na época de compra de material escolar. Olhavam canetinhas, enquanto uma outra mãe com sua filha olhavam cadernos. A criança da outra família pega um caderno com carros desenhados na capa e diz à mãe que aquela é sua escolha, olhando para a capa. A mãe, olhando para o caderno, diz à filha que aquele caderno não lhe é propriado e a criança não entende. A mãe explica: esse caderno é de menino. A menina que nós acompanhamos, então, vira-se para sua mãe e expressa com clareza: mas mãe, aquele caderno não é de menino. É de carro. Nossos preconceitos impõem à realidade a ideia de o que é “de menino” e o que é “de menina”. Mas crianças educadas de acordo com um método que respeite sua natureza sabem que esta não é a realidade. A realidade é que o caderno não é de menino. É de carro. 6. Obediência / Sublimação do Instinto de Possessividade Dessa vez a professora havia organizado os alunos para que repusessem a comida da sala a cada vez que acabasse. Mas naquele dia não havia dito nada. Isto não impediu um belo acontecimento de ocorrer. Um aluno de cerca de seis anos ia comer seu lanche. Pegou um prato no qual colocou sua fatia de pão e foi servir-se de frios. Quando chegou à primeira bandeja, de peito de peru, reparou que havia somente duas fatias restantes. Depositou seu prato na mesa, foi até a geladeira, abriu, pegou uma bandejinha de fatias de peito de peru, com um garfo retirou algumas e as colocou à disposição dos colegas, na mesa do lanche. Então, devolveu a bandejinha para a geladeira e foi terminar de se servir. Chegando novamente ao peito de peru, pegou somente uma fatia e foi sentar-se. E sobre esta história desejamos fazer uma brevíssima análise. Quando o menino chegou às fatias de peito de peru, havia o suficiente para si, e poderia servir-se. Mas, pensei eu, talvez ele não quisesse deixar a bandeja vazia. No entanto, ela não se esvaziaria, de qualquer forma, já que a criança ia pegar somente uma das fatias disponíveis. Assim, encher o recipiente com uma quantidade maior de fatias foi puro amor aos colegas e ausência de egoismo. Esta história tem-me servido bem quando preciso explicar que Montessori não é um método que incentive o individualismo, mas sim um método que incentiva cada indivíduo a dar o melhor de si para todos. 7. Alegria Escolas montessorianas são semelhantes no mundo todo. Por isso, podemos fazer comparações incríveis sobre o desenvolvimento de crianças de países, e mesmo continentes, diferentes. Outra vantagem desta semelhança é que crianças podem emigrar e imigrar e continuar com a mesma abordagem educacional, cultivando a mesma alegria de aprender. Um pequeno mexicano acabava de chegar ao Brasil, e já havia passado por duas ou três escolas, sem adaptar-se completamente, quando seus pais ficaram sabendo de uma escola montessoriana em São Paulo. Apesar de a escola ficar realmente longe de onde estavam morando, resolveram tantar levar seu filho em uma visita, para ver se funcionava. A criança tinha quatro anos. Chegando à escola, o menino foi levado, com a mãe e uma diretora, até a sala onde estavam os companheiros de mesma idade. Chegando lá, não teve tempo de conversar com a professora ou de conhecer amigos. Ficou extasiado diante de um só material, dizendo, ainda à porta, admirado: “La Torre Rosa!”. Nunca soube de outra linha pedagógica que proporcionasse tanta alegria a uma criança! Pequenas histórias nos ajudam a compreender os fenômenos que se dão em salas montessorianas, e que se mostram inacreditáveis quando anunciados sem os exemplos de episódios reais. A leitura da versão completa sobre as características da normalização, no entanto, ainda é de grande ajuda, e pode ser feita no livro que citamos: "Maria Montessori: Her Life and Work", de E.M. Standing, e que custa menos de doze dólares na Amazon.
2 Comentários
Evelaine
14/4/2013 13:39:39
Olá Gabriel. Muito Obrigada por estar nos prestigiando com seus textos sobre o trabalho de Montessori. Ainda não tenho comentários, mas quero registrar meu agradecimento e pedir que continue nos dando esses presentes! Evelaine
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Marion Wallis
7/5/2013 14:58:40
Concordo com você Evelaine. Quero ver seus comentários no futuro!
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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