Esta definição é especialmente interessante para nós, porque nos auxilia na compreensão do processo de normalização, considerado como o mais importante de toda a educação montessoriana. Sabemos que Maria Montessori passou a vida a observar as crianças e notou entre elas algumas semelhanças que nos surpreendem sempre. Descobriu, por exemplo, que ao contrário do que diz o senso comum, a criança não gosta de bagunça e excesso de ruído, mas que prefere ambientes organizados e silenciosos, ou com sons de fundo suaves e agradáveis. Características como essas, segundo Montessori e Standing, principalmente, mas também segundo Lillard e outros autores, são comuns a todas as crianças. Podemos considerá-las, então, universais da infância.
Segundo Montessori e Standing, características como o amor à ordem, o amor ao silêncio e o amor ao trabalho seriam naturais à criança. Para frutificarem com maior beleza e expansão, a criança deveria poder estar em um ambiente preparado para ela, no qual pudesse desenvolver sua autonomia e independência, ser respeitada pelo adulto e ter possibilidades plenas de desenvolvimento e aprendizado. Um modelo deste ambiente é a sala montessoriana: tem tudo adaptado à altura da criança, com um desenho belo e uma disposição agradável ao movimento e aos olhos. A mobília é leve e os materiais são bonitos, bem construídos e pensados ao longo de anos para o desenvolvimento ideal dos sentidos dos pequenos.
Assim, em uma sala montessoriana as tendências naturais da criança podem aflorar sem impedimentos e contar com a compreensão de adultos preparados, um ambiente adequado e colegas com virtudes semelhantes. Acontece, no entanto, que nem toda criança nasce em um ambiente Montessori. Em sua maioria, devido a uma falta de conhecimento sobre o desenvolvimento da infância, as crianças ainda nascem em ambientes compostos por mobília, materiais, brinquedos e pessoas que não as compreendem. Em casa é tudo alto, e as crianças dependem dos pais até para suas necessidades biológicas mais básicas. Na rua, tudo é proibido. A criança, via de regra, desenvolve-se apesar do adulto, e não com a ajuda dele.
Assim, quando chegam em nossas salas de aula, preparadas para as crianças e planejadas para seu melhor desenvolvimento, elas nos chegam sem apresentar quase nenhuma das características apontadas por Montessori como sendo naturais. Nosso trabalho, então, é auxiliar esta criança a normalizar-se.
O processo de normalização é uma caminhada de retorno ao equilíbrio natural da criança. Poderíamos chamar a criança normalizada de criança equilibrada. É um indivíduo que encontrou aquilo que lhe é inato e que havia perdido por ter sido submetido por meses ou anos a uma criação e educação que lhe reprimiram estas características.
Entre as várias abordagens da normalidade, a mais comum é a referência à Curva de Gauss. Em compreensão e linguagem leigas, trata-se de um gráfico estatístico segundo o qual há uma quantidade considerável de pessoas que se enquadram em uma média - e a essas pessoas podemos chamar "normais", por estarem dentro da norma esperada. As outras pessoas, às marges do gráfico, estariam fora da normalidade, para mais ou para menos.
Se tivéssemos uma boa curva de Gauus para o processo de normalização, veríamos uma considerável maioria das crianças cujo desenvolvimento não foi prejudicado por qualquer desvio neuronal ou químico dentro do que consideraríamos normalidade, se estivessem em uma sala montessoriana há um período razoável. Acontece, porém, que o que se dá em nossos ambientes é ainda mais radical: a quase totalidade das crianças passa pelo processo de normalização e vem a se comportar como descrito por professores montessorianos em vários locais do globo durante todo o último século.
Para a compreensão deste fenômeno, insistimos: quem normaliza-se é a criança. O adulto não a normaliza. Ele somente prepara um ambiente para que o processo possa acontecer. O trabalho realizado é todo do indivíduo em desenvolvimento.
Algo, nesta incrível transformação das crianças, deve ser considerado por nós. Se toda a infância, em todos os lugares, em diferentes períodos históricos, apresenta comportamentos semelhantes se é deixada em liberdade para o desenvolvimento de sua autonomia e independência em um ambiente preparado, então temos um processo que precisa ser compreendido em sua completude: trata-se do retorno da criança ao que lhe é inato e natural - ao que lhe é, portanto, normal.
"Normal", segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, quer dizer: o que é usual, comum, natural. E em qualquer ambiente preparado, com adultos preparados, onde haja total respeito pela infância, é usual, comum e natural que a criança se desenvolva da melhor forma possível.
Os próximos três artigos desta série serão publicados em breve e servirão ao estudo daqueles que desejarem compreender em detalhes e por várias perspectivas o processo de normalização dentro do método Montessori.