"Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam". (Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia) Montessori foi médica, antropóloga, técnica em matemática e educadora. Entretanto, nada disso fez com sossego. Como médica, foi a primeira médica de sua pátria, como antropóloga buscava os universais humanos para compreender a natureza fundamental do homem, como técnica em matemática enfrentou um ensino médio em que era a única garota, e como educadora revolucionou para sempre o que chamamos de educação. Em tempos, às vezes longos, e às vezes graves, de crises sociais e educacionais, é para pessoas como Montessori que precisamos olhar, com o objetivo de (re)formularmos nossa prática e nosso modo de ser no mundo e na escola, de maneira a contribuir para que os obstáculos, sabiamente expressos por Paulo Freire, não se eternizem. Desde 2010, quando comecei a frequentar aulas na Faculdade de Educação, escuto, leio e discuto Paulo Freire, e a cada semestre é mais nítido para mim que seguindo na direção que Freire apontava para a solução dos problemas da educação encontraríamos, senão no fim do caminho, já bem avançada nele, Montessori. Era e é notável para mim que, vindo antes de Freire e originando-se em países do mundo desenvolvido, Montessori tenha percebido e delineado claramente a solução universal para os problemas da educação - e ainda mais notável é que ela concorde com o maior pilar da educação no Brasil. De forma que talvez nos caiba com tranquilidade e esforço, compreender algumas das interfaces entre Freire e Montessori. Esta análise parte das ideias de Montessori e do livro "Pedagogia da Autonomia", de Freire, que é pequeno e pode ser encontrado facilmente em livrarias. É claro que somente algumas ideias dos dois gigantes da pedagogia serão utilizadas aqui, e é também claro que ao final do texto haja mais questões que respostas. O livro "Pedagogia da Autonomia" trata muito mais da preparação do professor do que do ato de ensinar em si. Não é um manual ou uma receita, e assim, será utilizado na comparação especialmente com as ideias filosóficas de Montessori e sua visão sobre o papel do professor. 1. Não há docência sem discência Para Montessori, não é o professor que ensina o aluno, mas a criança que, quando muito bem observada, permite-nos descobrir a psicologia da infância. É ela que nos revela o que é o ser humano, e nós, numa tentativa arrogante, buscamos lhe ensinar. Paulo Freire, por sua vez, nos diz: "Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender". Com a fala de Freire, temos mais um ponto de apoio na transformação de nós mesmos no professor idealizado por Montessori: não somos só professores, mas também aprendentes, e não nos cabe nenhuma superioridade. Sabemos, por Montessori, que o objetivo dos materiais não é o aprendizado objetivo, mas a organização e o desenvolvimento da mente. Assim, aquilo que é realmente importante a criança faz sozinha. Nós podemos lhe dizer os nomes das cores, mas quem se educa para distingui-las e enxergá-las, quem desenvolve a visão e a distinção, é a criança, sozinha. E o fazendo, nos ensina as imensas potencialidades do humano, aprendendo, em troca, o vermelho, o azul e a tranquilidade de poder desenvolver seu trabalho em paz. Sabemos também que a criança, quando chega na Casa das Crianças, aos seus três anos de idade, já vem "pronta". Ela já fala, anda, pega, consegue conversar, cantar e correr. Tudo isso, muitas das vezes, ela aprendeu sozinha. Por isso, diz Freire novamente, "Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência fundante de aprender". Aqui, novamente, vemos uma bela descrição do processo que se dá em uma sala montessoriana: a criança aprende. Não é o adulto quem ensina, e nem é a ele que cabe a maior parte da responsabilidade - o nosso papel, e este é imenso, fundamental e importantíssimo, é o de possibilitar o aprendizado e o desenvolvimento autônomo da criança. É o de formar um ambiente e nos portarmos de forma tal que a criança desenvolva-se independente de nós, partindo da experiência fundante de aprender. 2. Ensinar não é transferir conhecimento Isto nós sabemos bem. A criança não surge vazia, não é uma valise onde se depositam os conhecimentos da humanidade. É um pequeno ser, ávido por descobrir, explorar e construir-se, capaz de fazer relações e reformar o mundo, se preciso for. Muito mais ativo do que se supõe, inconscientemente, pela palavra "aluno", que em sua origem queria dizer "aquele que é alimentado". "Saber", diz Freire, "que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção" - e cá estamos novamente diante do ambiente preparado descrito por Montessori. Aproveito para tecer esta citação com mais duas: "Pensar certo - e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente pensar certo - é uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos", e "Sem rigorosidade metódica não há pensar certo". Diante destas três citações preciosas, penso que é um pouco de sorte que tenhamos, de alguma forma, tomado contato com Montessori, com uma pedagogia que nos diz incansavelmente: "a preparação para a educação é um estudo de si mesmo. O treinamento do professor que deve ajudar a vida é muito mais que o aprendizado de ideias. Inclui o treinamento do caráter, é uma preparação do espírito". Assim mesmo, porém, se Freire e Montessori só concordassem em seus ideais, poderíamos colocar no mesmo balaio de gatos uma infinidade de outros pedagogos que em seus discursos apoiam a reflexão crítica e a análise da própria prática. O que diferencia nossos dois maiores nomes é o fato de ambos considerarem sumamente importante a "rigorosidade metódica". Por isso especialmente devemos ser gratos e permanecer atentos a Montessori - ela, e aparentemente ela somente, nos provê método e a possibilidade da rigorosidade metódica em nossa prática e em nosso desenvolvimento. 3. Ensinar é uma especificidade humana Talvez o ponto mais interessante desta parte do livro de Freire seja seu comentário acerca da autoridade e da autonomia. Vejamo-lo todo: "Um esforço sempre presente à prática da autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de um sonho fundamental: o de persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo consigo mesma, em si mesma, com materiais que, embora vindo de fora de si, reelaborados por ela, a sua autonomia. É com ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade [vai] preenchendo o "espaço" antes "habitado" por sua dependência. Sua autonomia que se funda na responsabilidade vai sendo assumida". "Ensina-me a fazer isto sozinho", diz a criança para o adulto na sala montessoriana, na busca incessante por sua autonomia e fazendo com que o professor se regozige diante da visão do trabalho no ambiente que preparou. Este professor, sendo um pedagogo científico e um pedagogo da autonomia, finalmente sussurra feliz e realizado, para si mesmo: "Estão trabalhando como se eu não existisse". O processo de autonomia se realiza dia a dia na sala montessoriana, e nós somos agentes e testemunhas deste desenvolvimento. 4. Reflexões Esta última parte do texto não se refere a uma parte do livro de Freire, mas nela buscamos uma reflexão crítica sobre o papel do professor montessoriano no contexto social mais amplo. Slavoj Žižek, excelente filósofo contemporâneo, em uma de suas palestras nos diz que diante de ideias eternas nós nunca devemos perguntar se "são ainda atuais", mas devemos sim questionar "como a atualidade pode ser interpretada à luz destas ideias". No livro "Pedagogia(s) da Infância", Felipe e Joaquim Araújo nos explicam que "Montessori é eterna, como eterno é o segredo da criança, que o adulto guarda dentro de si". Se é assim, se Montessori é eterna e se a realidade deve ser interpretada à luz do que é eterno, então, finalmente, podemos olhar nosso século que aos poucos desabrocha e pensar, com carinho, como devemos nos enxergar neste contexto que se abre amplo e imenso de possibilidades diante de nós. Podemos perceber a realidade de uma das mais belas frases de Montessori: "esta é a última revolução". Se conseguirmos empilhar todas as pedras anunciadas por Montessori nos capítulos iniciais do livro "Mente Absorvente " e em "Formação do Homem", se nós compreendermos e aplicarmos com eficiência o que ela explica em seu "Pedagogia Científica" e no "Spontaneous Activity in Education", se soubermos contar histórias como ela pede em seu "Para Educar o Potencial Humano", finalmente, se sonharmos como ela sonha em "A Educação e a Paz", poderemos reconstruir o mundo. O papel social do professor montessoriano é seu papel científico levado a público: compreender a criança o máximo possível, e depois contar aos pais, aos familiares, a todos os que se envolvem com a infância nos mais variados momentos, contar a eles como a criança é, o que a criança é e quanto de sua atenção e admiração a criança merece. Finalmente, nosso papel é auxiliar a vida da criança, conduzindo-a em sua busca por liberdade e autonomia, conscientizando os adultos que a rodeiam, e transformando todos os ambientes em ambientes preparados, para que assim possamos ter certeza de que estamos realizando nosso propósito maior, lembrando do que nos disse nossa precursora: "Estabelecer a Paz é papel da educação. Tudo o que os políticos podem fazer é evitar a guerra". Luciana, nossa colega no curso de formação Montessori do CEMSP, deixou um comentário neste artigo que precisa ser adicionado ao final deste texto. Reproduzo-o aqui, para que ninguém termine este texto sem ler também uma das melhores definições do papel do professor montessoriano que se pode encontrar por aí:
Oi Gabriel! Gostei de suas reflexões, que me incitaram a escrever algumas réplicas: "aquilo que é realmente importante a criança faz sozinha", pensei sobre isso e queria complementar um pouco essa ideia,acredito que ela faça sozinha, mas como resultado da ação relacional. Quem completa o caminho é ela, naquela solidão humana que tanto nos assusta. "É o de formar um ambiente e nos portarmos de forma tal que a criança desenvolva-se independente de nós, partindo da experiência fundante de aprender". Sim, mas em relação a nós. Este professor, sendo um pedagogo científico e um pedagogo da autonomia, finalmente sussurra feliz e realizado, para si mesmo: "Estão trabalhando como se eu não existisse". Eu gosto de pensar que o professor está em latência, naquela seleção e organização do material. É ali que ele existe. Como um livro fechado, a sala montessoriana se disponibiliza para que as crianças a adentrem e nela descubram um universo, seu universo particular, na medida em que vão lendo as estantes, escolhendo as atividades que mais lhe aprazem, ou de que mais necessitam. Como num livro de poesia, o conteúdo se apresenta em potencial, ele espera o movimento do outro. Como num livro, o poeta já se satisfez ao imprimir no papel sua visão sobre o mundo e a organizou ali, no preto das palavras sobre a página branca. Da mesma maneira, o professor montessoriano já se satisfez, ao dispor os materiais especificamente para aquelas crianças. Enquanto arrumava a sala, o professor era o poeta, que pensa, gosta da ideia, desiste, a rearranja, a mantém ali em estado de espera, até que uma criança ouça o chamado daquelas palavras, daquelas intenções, daqueles sentimentos que habitaram a cabeça do professor e que agora podem ser colhidos, no momento em que a criança quiser ou puder lidar com este ou aquele poema. Beijo, obrigada por provocar meu pensamento!
1 Comentário
Luciana
12/7/2013 12:41:41
Oi Gabriel! Gostei de suas reflexões, que me incitaram a escrever algumas réplicas:
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AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
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