Para Montessori, nunca é demais repetir, "A preparação que nosso método exige do professor é o auto-exame, a renúncia à tirania. Deve expelir do coração a ira e o orgulho, deve saber humilhar-se e revestir-se de caridade. Estas são as disposições que seu espírito deve adquirir, a base da balança, o indispensável ponto de apoio para seu equilíbrio. Nisso consiste a preparação interior, o ponto de partida e a meta" (Maria Montessori, A Criança) Todas estas virtudes, todo o imenso trabalho de autoconhecimento recomendado por Montessori, não é uma receita de ser humano perfeito, tanto quanto é uma orientação mínima de trabalho para a lida diária com aqueles que são, ao mesmo tempo a promessa e a esperança da humanidade. Se desejamos uma humanidade futura melhor, se pensamos na possbilidade (para muitos cada vez mais remota) de mudar o mundo, então devemos fazê-lo todos os dias, de manhã à noite, em sala de aula e fora dela, quando trabalhamos e vivemos - porque, direta ou indiretamente, todas as nossas ações afetam a infância. De todos os sentimentos que podemos provocar em uma criança, o pior é a vergonha. Não o digo sozinho, mas apoiando-me sobre doze anos de pesquisa sobre conexão humana realizada por Brené Brown, autora de “Daring Greatly” e palestrante do TED (as duas palestras seguem no fim do texto). Brown nos diz que o ser humano tem seu cérebro construído para conectar-se - somos, desde Platão, seres sociais. Esta não é a novidade. A novidade, segundo Brown, é que estamos nos fechando à conexão. Estamos nos tornando invulneráveis. Estamos fazendo conosco mais ou menos isso: Quando nos tornamos invulneráveis, ela defende, protegemo-nos nas emoções mais difíceis de suportar. Sentimos menos tristeza, menos medo, menos angústia, menos vergonha. Entretanto, o que deixamos escapar é ainda maior: sentimos menos alegria, menos prazer, descobrimos menos aspectos novos da vida, sentimos menos amor, menos vontade, menos paixão e perdemos, pouco a pouco, a noção de nosso próprio valor. Isso é grave para adultos, mas é ainda mais grave para crianças. O cérebro da criança está se construindo e é na primeira infância e, depois, na adolescência, que ela vai formar as redes neuronais responsáveis pela forma como ela se portará no mundo. Entre zero e seis anos, e depois entre doze e dezoito, as crianças e os adolescentes vão formar seu coração. E ele pode ser aberto, vulnerável às belezas e vicissitudes da vida, ou fechado e protegido do sofrimento e, infelizmente, da alegria. Parte da responsabilidade sobre esta formação é da família de cada criança, parte é da sociedade que a circunda, mas parte é nossa - dos seus professores, que as acompanham por quatro, cinco ou dez horas por dia, cinco vezes por semana - conosco, as crianças passam muitas vezes mais tempo acordadas do que em suas casas, especialmente com sua família. Montessori não dissertou especificamente sobre as implicâncias da vergonha para a vulnerabilidade, mas garantiu que o professor não provocasse vergonha às crianças jamais, permitindo assim que elas se criassem e construíssem confiantes em si mesmas e certas de que, ainda que cometessem erros, deveriam continuar tentando. Brené Brown, quando trata dos fatores que nos levam a construir a carapaça metálica forte, protetora e isolante em volta de nossa sensibilidade para com o mundo, diz que o gerador fundamental é a vergonha. A vergonha, explica, é diferente da culpa. A culpa é pensar que “cometi um erro” - a vergonha é pensar que “eu sou um erro”. Parece radical assim, mas um pouco de ponderação nos leva a perceber a exatidão do racíocínio de Brown. Quando perdemos o horário de um compromisso e pensamos: “Eu sou muito distraído” ou “Eu sou muito relapso” em vez de “Eu demorei muito para me arrumar” ou “Eu não previ o trânsito que enfrentaria”, estamos projetando em nós mesmos vergonha em vez de culpa. A culpa, por si, não é boa, mas permite que retomemos nosso comportamento e o modifiquemos segundo nossa vontade. A vergonha sedimenta-se e transforma-nos nela, torna-nos medrosos e invulneráveis, fracos e assustados com o mundo. A vergonha nos faz deixar de ousar, de nos expor, de tentar mudar as coisas como elas são. Na criança, a vergonha se sedimenta mais rápido, e mais profundamente, porque ela tem uma mente absorvente. Ela está se desenvolvendo e é seu próprio embrião psíquico. Tudo o que pensa, faz e testemunha forma sua mente e sua personalidade. Assim, uma criança que precise lidar com seus erros, mas não com a vergonha de tê-los cometido, se tornará mais tarde um adulto forte, capaz de suportar a culpa, mas manter-se vulnerável, aberto ao que o mundo tem de fabuloso e belo. Os materiais montessorianos têm um dispositivo que ainda está sendo desenvolvido nas outras abordagens pedagógicas e se faz cada vez mais presente na educação digital, que é a mais atenta às descobertas neurocientíficas e psicológicas: o controle do erro. O controle do erro garante que a criança possa errar e que ela mesma possa olhar para o que fez e consertá-lo, sem que precise de um adulto, muito maior e mais experiente, dizendo-lhe que errou. O adulto, quando diz que a criança errou, constrói nela o medo da reprovação, que não surge quando o erro acontece por si e ela o percebe. A criança não teme, naturalmente, o erro e a reprovação. Ela se coloca no mundo, aberta a ele, pronta a explorar e descobrir. Sabe que falhará e terá de tentar de novo, percebe as próprias dificuldades e a capacidade que tem de superá-las. Nós não precisamos elogiá-la por isso, esta é sua natureza. Elogiar uma criança por tentar de novo, ou por conseguir, é como elogiar uma macieira por produzir maçãs, ou elogiar um elefante por ter uma tromba, ou elogiar o mar por suas ondas. A busca e a conquista são parte da natureza da criança, e tudo o que precisamos fazer é garantir que esta natureza poderá se desenvolver completamente e com perfeição. Por outro lado, não podemos reprovar a criança por seus erros. Isso também seria como criticar a macieira por suas maçãs, o elefante por sua tromba e o mar por suas ondas. Os erros, como os acertos, são parte do desenvolvimento. Não se acerta de primeira, nunca. E a criança não se preocupa em fazê-lo, a menos que seja condicionada à vergonha. Pensar “Cometi um erro” para a criança, não é grave. Pensar “Eu sou um erro” a impede de continuar tentando. Ela cria, então, fugas e barreiras, busca mundos alternativos e evita interagir com o mundo real, com os objetos e com os outros seres que a rodeiam. Nosso papel é garantir que a vergonha não entre em nossas salas de aula - para fazer isso, não é necessário, e é pernicioso, utilizar elogios. É antes, necessário lembrar de outra recomendação de Montessori: “A preparação real para a educação é o estudo de si mesmo. O treino do professor é mais do que o aprendizado de ideias. Inclui o treinamento do caráter, é uma preparação do espírito”. E então poderemos guardar em nossos corações, abertos e vulneráveis, a certeza de que “A criança que se tornou mestre de suas ações por meio de atividades longas, agradáveis e interessantes nas quais engajou-se é uma criança preenchida por saúde e alegria e notável por sua tranquilidade e disciplina”. Agora, Brené Brown:
4 Comentários
Loren
16/10/2013 00:25:48
Amei o texto!
Responder
Luciana
9/12/2013 15:29:56
Mais um texto perturbador, no bom sentido da palavra. Suas palavras vão ecoar em minha mente por muito tempo ainda. Gostaria de saber se seria possível fazer uma sessão com exemplos, modelos mesmo de atitudes dos pais/professores para com as crianças que fossem alternativas ao castigo, ao elogio fútil, etc.
Responder
Camila
29/5/2015 08:22:04
Excelente texto. Me vi muito nele. Sempre fui envergonhada por me sentir um erro!! Acho que precisarei de um regreção para me sentir mais confiante e melhor. Farei de tudo para minha filha jamais se sentir assim!
Responder
11/5/2023 22:27:24
Agradeço pelo artigo e pela reflexão sobre a importância de termos cuidado com as nossas ações e palavras ao lidar com as crianças. É fundamental reconhecermos que somos seres sociais e que a conexão com os outros é essencial para a nossa saúde emocional e mental. Evitar provocar vergonha nas crianças é um ponto importante que deve ser levado em consideração para garantir o desenvolvimento saudável delas. Obrigado por compartilhar essas reflexões conosco.
Responder
Deixe uma resposta. |
AutoresGabriel M Salomão foi aluno de uma escola montessoriana por doze anos. Hoje, realiza seu doutorado sobre o Método Montessori e difunde o método para escolas e famílias. Escreve sobre educação montessoriana aqui e no Lar Montessori. Arquivos
Fevereiro 2018
Categorias |